Ardente prazer
O alho e a cebola estão entre os primeiros vegetais que o homem aprendeu a cultivar. Valeu a pena, apesar do cheiro e do choro.
Sílvio Lancellotti
Diz uma antiqüíssima lenda turca que, ao ser expulso por Deus do Paraíso, Satanás ao menos conseguiu cair sobre a Terra com equilíbrio e galhardia. Onde o Demônio colocou o seu pé esquerdo nasceu o alho. Onde ele pôs o pé direito brotou a cebola. De fato, tais produtos referem muito do Inferno em seu caráter e na sua biológica composição. A cebola, especialmente, ostenta em seu bulbo uma essência volátil e lacrimogênea, fortemente sulfurosa e cianídrica, como deve ser o Reinado das Trevas, se de fato existir em algum lugar.
Parentes muito próximos, o alho e a cebola, como o aspargo, provêm todos da ordem das Lilifloras. Como também a cebolinha-verde, a echalota e o poró, cebola e alho fazem parte da família botânica das Liliáceas e do gênero Allium, conforme a clássica descrição do taxionomista sueco Carolus Linnaeus (1707-1778). Desse ramo em diante, todavia, a confusão se estabelece através de 950 espécies diferentes.
A cebola se chama Allium cepa. O alho, A. sativum. O poró, A. porrum ou A. ampeloprasum, dependendo do definidor. A cebolinha-verde, A. shoenoprasum, A. fistulosum ou A. tuberosum. Denomina-se igualmente A. fistulosum a cebolinha-de-inverno, scallion para os ingleses e scalogno para os italianos, muito semelhante à verde, com a raiz bem mais gorducha e alentada. E ainda existe quem considere no mesmo molde a famosíssima echalota, miúda, de pele bronzeada e no formato de um dente gigantesco de alho, na realidade A. ascalonicum. O motivo da bagunça é fácil de explicar. Ocorre que o gênero Allium é desconhecido em estado selvagem.
Suas plantas estão entre as primeiras que o homem aprendeu a cultivar, perto de 10 ou 12 mil anos atrás, e todas parecem derivar de um certo A. oschaninii, que, posteriormente, por meio de misturas e hibridações, abriu-se no atual leque formidável de variedades bem semelhantes e ao mesmo tempo, em seus mais íntimos meandros, totalmente diferenciáveis. Só na categoria da A. cepa há perto de 350 subtipos no formato, na cor, no aroma e no paladar. Ocorreu um emaranhado de perplexidades, por conseqüência, na determinação histórica do nome comum do produto.
A meada provavelmente iniciou-se no grego arcaico kepe, que significava ardência, e aos poucos foi-se transformando em kepaia e, no latim, virou caepa e no gaulês se tornou cepa e cive, civet, ciboulette. Simultaneamente, nos dialetos românicos, falava-se em unio, pois a cebola é monocotiledônea, ou seja, possui uma única membrana embrionária ao redor da sua semente individual. De unio se chegou a unionen, a ungeon, a oingnon e enfim ao francês oignon e ao inglês onion. Felizmente perdeu-se na obscuridade o termo aigrum, que nos idos medievais se utilizava para caracterizar o alho, a cebola, a echalota, a raiz-forte e até o agrião.
Quem chorou primeiro ao cortar uma cebola? Provavelmente os mesopotâmicos, os assírios e os caldeus que a transportaram ao Egito. Uma inscrição cuneiforme na linguagem gráfica mais primitiva que se conhece, a sumeriana, relata que autoridades da cidade de Babilônia foram punidas, nos entornos de 2400 a.C., por roubarem a iguaria, acompanhada de pepinos, que os cidadãos deixavam num templo de oferendas divinas. O venerando Código de Hammurabi, princípio de todas as leis do planeta, já estipulava que os miseráveis receberiam como donativo do governo uma ração mensal de pão e cebola — aliás, o alimento básico dos escravos que erigiram as pirâmides de Quéops, Quéfrem e Miquerinos.
Era hábito, naqueles tempos, rodearem-se os corpos dos defuntos mumificados com cebolas, particularmente entre o tórax e os braços, sobre os olhos e junto às orelhas, e em toda a zona pélvica. Havia a crença de que o produto, por causa das suas infindáveis folhas superpostas, funcionaria como um caminho no rumo da imortalidade. Mágica sabedoria. De fato a A. cepa dispõe da comprovada propriedade de auxiliar a conservação de outros alimentos, graças a um de seus componentes químicos, o qüercitol, admirável antioxidante e antifermentante natural. Ainda hoje, na França, sobrevive uma curiosa seita religiosa, com cerca de 4 mil fanáticos, que adoram a cebola como uma deidade capaz de lhes assegurar a vida eterna — cada fiel da coisa come meia dúzia delas, cruas, por dia. No século de Péricles, entre 500 e 400 a.C., o então famoso mercado ateniense de vegetais se destacava pelo vasto rol de espécies que os gregos comiam com alho, repolho, ervilhas e lentilhas.
Não se sabe exatamente, porém, de que maneira e quando a cebola desembarcou em Roma. No último século antes de Cristo, o poeta Horácio glorificou a A. cepa como um componente crucial de sua “dieta econômica”. Marcus Gavius Apicius, na mesma época, desandou a usar a cebola nas receitas então muito requintadas de seu pioneiríssimo compêndio gastronômico, como integrante de marinadas, molhos ou companhia para pratos de carne ou de peixe. Logo, pão com cebola passou a representar uma combinação muito comum no desjejum dos romanos, rapidamente apegados ao seu cultivo na península inteira, em especial nas áreas mais pobres do centro e do sul.
No primeiro livro sobre agricultura jamais escrito, o filósofo Lucius Yunius Moderatus Columella, nos entornos do ano 50, manifestou a sua paixão ardente pela cebola de Pompéia, nos arredores de Nápoles. Ironicamente, quando os arqueólogos escavaram as ruínas da cidade destruída em minutos por uma erupção do vulcão Vesúvio, um dos itens encontrados foi uma cesta de cebolas calcinadas pelo calor. Local do achado: um bordel, circunstância capaz de demonstrar que os freqüentadores e/ou as damas do local não se constrangiam com a pungência da iguaria.
Nas feiras romanas, de todo modo, os vendedores de cebola eram obrigados a expor a sua mercadoria bem distante dos tabuleiros com frutas e outros vegetais. Apenas por volta de 110, quando o imperador Trajano construiu o seu fantástico mercado em Roma, a cebola mereceu mais respeito num recanto da edificação em que réstias gigantescas, como uma floresta de estalactites, desciam do teto ao piso do andar inferior. Germanos e eslavos também se fascinaram com o produto, uma escolta indispensável de seus assados. Carlos Magno (742-814), o inspirado e visionário rei dos francos, fundador do Sacro Império Romano – Germânico, dominador de um território que se espraiava da Áustria à Bélgica, exigiu a sua plantação organizada nas hortas de seu palácio; aliás, grande gastrônomo e fascinado pela agronomia, ele foi o responsável pela implantação extensiva na Europa de uma infinidade de cultivares.
A cebola fazia parte obrigatória das relações de dotes que os camponeses entregavam, como pagamento de impostos, aos senhores feudais. Na Inglaterra de Elizabeth I (1533-1603), o matrimônio de cebola e alho-poró, representava a salada predileta da aristocracia. E A. cepa ia fazendo o seu providencial sucesso também no Novo Mundo. Em 1624, um certo padre francês, Père Marchette, instalou uma colônia num ponto remotíssimo ao sul do Lago Michigan, nos futuros Estados Unidos, e deu-lhe o nome de Chicago, a palavra que os nativos locais utilizavam para definir o forte olor que emanava das abundantes plantações de cebola da região. Tal iguaria acabou codificada, por Linnaeus, como Allium canadensis.
Do outro lado do planeta, os arquitetos eslavos se baseavam nos desenhos bulbosos da A. cepa e das suas variedades para com eles enfeitarem as cúpulas e as torres das igrejas, um hábito que se estenderia do apogeu do czarismo russo até a vitória dos revolucionários comunistas sobre o despotismo e o desgoverno de Nicolau II em 1917. Nesse trajeto, ninguém resolveu, porém, a questão do choro induzido imediatamente pelo corte de uma cebola.
As simpatias antilágrimas se multiplicaram, certamente a um número incomparável dentro das atividades culinárias. Há quem descasque e fatie o produto debaixo da água ou perto do fogo, na esperança de dissipar os gases da incômoda essência. Há quem congele a cebola antecipadamente e há quem lhe dê um banho de forno aceso em ponto forte. Há quem coloque um palito de fósforo na boca — a madeira teria a capacidade de absorver a oleosidade sulfurosa e cianídrica que a cebola dissipa no ar. Há, enfim, quem crie uma máscara protetora, mordendo uma lasca bem grande de casca de pão.
Patetices à parte, a solução ideal é sempre a mais simples e mais prática. Basta talhar a cebola ao meio e então cortá-la finalmente, no sentido vertical, o miolo voltado para baixo, com uma faca bem delgada, superafiada, com movimentos firmes, que separem sem machucar. O cheiro que perdurar nas mãos pode ser eliminado com sal e limão, ou sal e vinagre. Encontram-se amostras de A. cepa o ano inteiro, embora as melhores costumem maturar nos meses de frio. A produção mundial, em 1988, situou-se em torno de 20 milhões de toneladas, quase a metade delas proveniente da Ásia, em particular da China, o maior plantador mundial.
O Brasil participa com quase 3,5 por cento da produção, 650 mil toneladas, 40 por cento colhidas no Estado de São Paulo, dos tipos Baía-Piracicaba (de aspecto periforme, bojudo, película clara e interior creme-avermelhado) e Monte Alegre (de bulbo esférico e tonalidades creme-amareladas). Em geral, as cebolas menores e mais jovens apresentam maciez e pungência superiores, devendo ser privilegiadas, na gastronomia, em relação às maiores e às idosas. De todo modo, durante o cozimento, praticamente todos os tipos de A. cepa se igualam. O ideal é se escolherem cebolas firmes, de bom peso em relação ao seu volume, com as peles exteriores bem secas e transparentes, sem machucaduras ou brotos aparentes. Evitar, sempre, as molengas, umedecidas ou transpirantes, com pontos pretos nas camadas de fora.
Dependuradas em algum lugar fresco, enxuto, escuro e ventilado, as cebolas podem resistir várias semanas ao armazenamento, sem desperdício de suas características alquímicas. Evitar, sempre, sacos de plástico ou outro material não poroso. Jamais guardar cebolas no refrigerador. No caso, eventual, de surgirem brotos numa A. cepa, os seus verdes podem tranqüilamente ser utilizados como cebolinhas. No departamento das técnicas culinárias, a A. cepa é tratada com extrema simplicidade. Os seus múltiplos métodos de cozimento não exigem espertezas especiais de chef algum. De todo modo parece interessante revelar alguns truques. Por exemplo, quando se despejam cebolas inteiras num caldo ou molho, não se esquecer de furá-las até o meio, com um garfo ou um espeto, cruzadamente, a fim de aliviar as pressões internas e impedir que o bulbo exploda. Durante uma fritura, usar o fogo forte exclusivamente no princípio da operação e rebaixar a chama pouco a pouco para que os óleos essenciais do produto se misturem à gordura em vez de se evaporar. Nunca permitir que as cebolas se queimem, pois isso as tornará acres e difíceis de digerir.
A A. cepa não se destaca por seu conteúdo vitamínico. Dentre os sais minerais que contém, os mais abundantes são o cálcio, o potássio, o sódio, o fósforo e principalmente o flúor. Na sua composição, 88 por cento corresponde à água e 10 por cento aos glicídios, numa correlação de aproximadamente 40 calorias por cada 100 gramas. Medicinalmente, desde os mesopotâmicos a cebola carrega a tradição de ser um bom diurético, auxiliando as funções renais. Também se comprovou a sua competência no tratamento das bronquites asmáticas de estimulação alérgica.
Para saber mais:
(SUPER número 10, ano 3)
(SUPER número 10, ano 7)