Em Laguna, litoral de Santa Catarina, os pescadores jogam as redes só quando os golfinhos estão por perto. É que alguns dos animais que vivem por lá são seus colegas de trabalho. Por baixo da água, eles vão encurralando os peixes para perto da rede e garantem que a pesca do dia será boa. Se os pescadores não estiverem atentos, eles deduram, com acenos de cabeça e apontando com as nadadeiras, onde está o cardume. Ao final de tudo, parte da presa fica com os botos e todo mundo sai ganhando. A parceria já dura mais de cem anos – só mudam os golfinhos e os humanos.
Longe dali, no Instituto de Estudos de Mamíferos Marinhos, no Mississippi (EUA), a golfinha Kelly também corre atrás do ganha-pão dentro do seu aquário. Os treinadores a ensinaram a recolher o lixo do fundo do tanque em troca de um petisco. Com o tempo, Kelly sacou que não adiantava recolher lixo quando os treinadores não estavam por perto. Assim, começou a esconder os dejetos atrás de uma pedra para entregá-los apenas quando os humanos aparecessem de novo.
Logo a golfinha também percebeu que o tamanho do lixo não fazia diferença, o lanche era sempre o mesmo. Ela não teve dúvidas: começou a picotar o lixo, para ganhar um peixe para cada pedacinho que entregasse. Mas a espertinha não parou por aí. Um dia, uma gaivota caiu no tanque. A golfinha recolheu a ave morta e ganhou um balde inteiro de peixes em troca. O negócio foi tão lucrativo que Kelly se tornou uma assassina. Usou os próximos peixes que recebeu como isca para gaivotas e então – zapt – passou a capturá-las e trocá-las por mais e mais baldes de peixe.
Essas duas histórias não são casos isolados. Ao redor do mundo, golfinhos provam o tempo todo que não são apenas um rostinho bonito no oceano – são donos de um cérebro fora do comum. Há espécies que não só aprendem a usar ferramentas, como ensinam seus filhos a usá-las. Há outras que jogam uma espécie de vôlei subaquático com algas apenas para se divertir. Há orcas – que não, não são baleias, mas golfinhos oceânicos – que usam dialetos para se comunicar.
Em comum, todos têm uma inteligência única no reino animal. “Os golfinhos são particularmente bons em inovar. Aves também o fazem, mas golfinhos, além de criativos, sabem como passar isso para a frente”, diz Mauricio Cantor, especialista em mamíferos marinhos das Universidades Federais de Santa Catarina e do Paraná. Medir a inteligência de um ser vivo é algo complicado – há tantas definições por aí quanto teóricos tentando defini-la. Mas criatividade, reconhecimento de padrões e rapidez costumam ser unanimidade. “Os golfinhos também são excelentes em plasticidade, a capacidade de resolver problemas de forma criativa”, diz Cantor.
De fato, seu cérebro é de deixar qualquer um com inveja. Quando se compara o tamanho do corpo desses bichos com o tamanho de seu cérebro, eles têm um índice parecido com o dos humanos (6,5 para nós; 5,5 para eles). E ganham de lavada dos chimpanzés (apenas 2,6), outros gênios do reino animal.
Mais uma medida de inteligência é o índice que relaciona o peso do neocórtex, a parte mais complexa da massa cinzenta, com o peso total do cérebro dos animais. Nos humanos, ele é de 1,75. Nos cetáceos, chega a 2,7. Nada mal: essa área é responsável pela linguagem, a tomada de decisão, os movimentos voluntários e o processamento dos sentidos. Um grande neocórtex indica intensa atividade nessas áreas. “A complexidade é relacionada a funções cognitivas superiores, como atenção, julgamento e comportamento social”, diz Lori Marino, pesquisadora na Emory University, EUA.
Alienígenas terrestres
Esse QI altíssimo não surgiu por acaso. É fruto da adaptação dos golfinhos ao ambiente em que vivem. Para entender, é preciso voltar à época em que tinham pernas. Os cetáceos evoluíram de um tipo ancestral de ungulado, mamífero quadrúpede que foi também antepassado dos hipopótamos, camelos, cavalos e elefantes – todos os bichos de casco.
Há 50 milhões de anos, uma parte desses ungulados primitivos começou a viver perto da água, em busca de alimento. Aos poucos, foram passando cada vez mais tempo submersos, até que seu corpo acabou adaptado à vida submarina. As patas traseiras atrofiaram, seus rabos se tornaram ultramusculosos, sua mandíbula ficou ainda mais comprida. O resultado é o que você conhece: um bicho que tem todo o design de peixe, mas que respira fora d’água e alimenta seus filhotes com leite.
Uma vida submarina, porém, tem suas agruras. Para começar, a luz e o som se propagam de forma diferente na água e no ar, e os sentidos terrestres dos golfinhos se tornaram mambembes – se você alguma vez na vida já afundou a cabeça na água, sabe do que estamos falando. Assim, visão, olfato e audição precisaram passar por uma extrema atualização de software – e é essa adaptação que explica seus cérebros avantajados.
Apesar de enxergarem bem (a exceção são os golfinhos de água doce, como nosso boto-cor-de-rosa, que são quase cegos), seu sentido dominante é a audição. Todas as estruturas do cérebro associadas ao som são maciças nos cetáceos. O volume do núcleo coclear – a área que recebe inputs do nervo auditivo – no golfinho é até dez vezes maior do que nos humanos.
Além disso, visão e audição trabalham juntas de uma forma tão integrada que se tornaram quase um sentido novo. Nos macacões, como nós e os chimpanzés, a informação visual é processada primeiro no córtex visual, na parte de trás do cérebro, enquanto o som é analisado na lateral, a região temporal. Já nos cetáceos, as zonas de projeção auditiva e visual estão localizadas na região parietal, no topo dos hemisférios, e processam informação de maneira conjunta.
Essa característica é única entre mamíferos. “A integração entre os sentidos significa também modificações cognitivas mais amplas”, diz Marino. Ou seja, a maneira como os golfinhos e baleias processam a informação ao redor fez com que desenvolvessem uma inteligência diferente de todas as outras do planeta. (Entre os cetáceos, os golfinhos são o destaque, já que têm o cérebro proporcionalmente maior que o das baleias.) Assim, não é exagero dizer que os golfinhos são uma espécie de vida alienígena inteligente dentro da Terra – seus cérebros são organizados de maneira tão esquisita, e eles habitam um planeta tão diferente do nosso (o fundo do mar), que tentar entendê-los é um desafio tão grande quanto cumprimentar um ET.
A rede social
Mas, antes de entrar no fascinante mundo das conversas oceânicas, precisamos entender outra característica que explica o QIzão desses bichos. Assim como nós, eles são animais sociais. Golfinhos que vivem em rios ou perto da praia costumam viver em grupos de algumas dezenas. Já os que vivem em alto-mar são mais gregários: organizam grupos com centenas de milhares de membros.
O motivo é simples: em alto-mar há mais comida, mais recurso para cuidar dos pequenos e mais problemas com predadores – aí vale a pena montar uma metrópole para se proteger e caçar em bando. Golfinhos vivem em todos os cantos do mundo (a orca, aliás, é o segundo mamífero em distribuição geográfica, só perde para nós), e cada grupo tem um tipo único de organização social, com regras, conhecimentos e até gírias próprias.
Golfinhos vivem muito (entre 30 e 60 anos, de acordo com a espécie) e têm longas gestações (entre um ano e um ano e meio). Quando a cria nasce, ela passa outros quatro anos vivendo – e o principal: aprendendo – com as mães. “Como acontece com primatas e elefantes, a dependência do filhote fornece o tempo extra necessário para que aprendam habilidades específicas, principalmente com a mãe, mas também com a comunidade”, diz Heidi Pearson, professora de biologia marinha da Universidade do Sudeste do Alasca.
É ao longo dessa convivência, por exemplo, que as mães da espécie nariz-de-garrafa, da Austrália, ensinam seus filhotes a vasculhar o fundo do oceano com uma esponja do mar acoplada no nariz. As golfinhas usam essa ferramenta para proteger seus delicados narizes enquanto procuram peixes escondidos debaixo da areia – e conseguem passar essa habilidade adiante. Há biólogos que acreditam que esse comportamento é um sinal de cultura: indica a capacidade de desenvolver um hábito único dentro de um grupo e de passá-lo adiante.
Fale com eles
São os golfinhos-pintados das Bahamas que gostam de jogar algas entre si, numa espécie de vôlei submarino. Os pesquisadores americanos da equipe do Wild Dolphin Project já estão habituados a vê-los jogar uns com os outros, mas às vezes é diferente – de vez em quando, os animais parecem chamar os humanos para bater uma bolinha. “Em vez de ficarem na postura horizontal costumeira, ficam numa posição vertical na água, segurando e soltando a alga para que a peguemos. Se não mergulhamos para buscar, eles trazem a alga para a superfície e sacodem com a cauda na nossa direção, como fazem com seus bebês”, disse Denise Herzing, uma das maiores especialistas em golfinhos do planeta, em uma palestra do TED. Sim, esses golfinhos estudados pela dra. Herzing ficam tentando adestrar os humanos.
A equipe, porém, não quer só jogar bola com os flippers. Há 30 anos pesquisando o mesmo grupo, a ideia é aprender a se comunicar com eles. Há cinco anos, os cientistas conseguiram chegar ao projeto CHAT, uma espécie de computador subaquático desenvolvido para bater um papo com os animais. O equipamento vai atado ao corpo de um pesquisador e inclui um teclado, alto-falantes e microfones. Ele é programado para emitir assobios-assinatura dos golfinhos e também é capaz de gravar o que eles emitirem em resposta. A ideia é fazer com que os bichos aprendam a associar os assobios emitidos pelo CHAT a um objeto: um lenço, uma corda e uma alga. Caso consigam, será o começo de uma nova linguagem partilhada entre golfinhos e humanos.
Outra equipe também está tentando compreender o que se fala no fundo do mar. A startup sueca Gavagai está usando uma inteligência artificial com software de reconhecimento de linguagem para desvendar a tagarelice dos golfos. O projeto – que ainda não começou oficialmente – reúne um especialista em golfinhos, dois programadores, um filósofo (para definir o que é “linguagem”) e um linguista: Robert Eklund, PhD especialista em linguagem, cultura e fonética. Qualquer semelhança com o filme A Chegada, no qual linguistas e físicos ficam conversando com alienígenas gigantes que parecem polvos, não é mera coincidência (embora os pesquisadores odeiem a comparação).
O projeto envolve três tarefas hercúleas: segmentar os sinais emitidos pelos golfinhos em unidades fundamentais (como são as nossas sílabas, por exemplo); tentar reconhecer como essas unidades formam conceitos – e só então quebrar a cabeça para tentar desvendar seu significado.
Parece difícil? Tem mais: ainda é preciso reconhecer a prosódia, características como entonação, dialetos e sotaques. “Nosso pressentimento é que existem esses sinais comunicativos segmentáveis, assim como nossos fonemas são combinados em sílabas e palavras”, diz Eklund. “Uma vez que um sinal for segmentado, a análise permitirá modelos de similaridade, como: ‘o segmento A é sempre usado junto ao segmento B’, por exemplo.”
A maior dificuldade que os pesquisadores devem encontrar, seja lá qual for o método escolhido, é a riqueza de sons produzidos pelos golfinhos, tanto em variação quanto em forma de emissão. Os golfinhos se comunicam usando sinais complexos de pelo menos dois tipos – assobios e cliques –, que são produzidos em sistemas anatômicos diferentes. Os assobios podem durar vários segundos e são contínuos. Entre eles, ainda há o que os pesquisadores chamam de assobios-assinatura, que parecem representar o nome próprio de cada golfinho – e não se sabe se eventualmente os nomes se repetem, como os Enzos e Valentinas entre os humanos.
Além dos assobios, os golfinhos produzem sinais pulsados, chamados de cliques. Eles são usados tanto para comunicação quanto para percepção do ambiente por meio da ecolocalização. O golfinho gera o clique inspirando e expirando pelos sacos nasais (o buraco na cabeça). O som se propaga na água, bate no objeto e volta para o golfinho, que consegue saber a distância, se ele está em movimento e até detalhes como textura, densidade e tamanho.
Essa versatilidade na hora de conversar abre outro caminho possível para o nosso papo com os golfinhos: ensiná-los a falar “humanês”. Já existe até um primeiro resultado. No começo deste ano, Wikie, uma orca que vive num aquário na França, conseguiu repetir foneticamente, em inglês, algumas palavras. Ela literalmente falou “bye-bye”, “hello” e contou até três – mas os pesquisadores acreditam que não fazia a menor ideia do que tinha dito.
Por enquanto, o experimento serviu para reforçar a ideia de que orcas de fato aprendem sons por imitação. A outra certeza é que orcas, botos e golfinhos são bichos que realmente conversam entre si. O que resta a nós é seguir tentando decifrar o que os nossos vizinhos alienígenas estão tramando debaixo d’água.