Garimpo não é crime. É possível ser garimpeiro no território brasileiro – e lucrar extraindo minerais como ouro (ou diamante, ou columbita, ou cassiterita… a lista é longa) – sem colocar nenhum dedo fora da lei. Para isso, é claro, é preciso seguir algumas regras, todas resumidas em um documento especial, chamado Estatuto do Garimpeiro. Ele exige que todo garimpeiro se registre, mesmo que trabalhe sozinho ou com uma cooperativa, e que o trabalho só seja feito em áreas previamente aprovadas para extração.
Não é um pedaço pequeno de terra. São mais 500 mil hectares espalhados em 10 estados: Amazonas, Amapá, Bahia, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, Pernambuco, Rondônia e Tocantins. Chega perto da área da cidade de Toronto, no Canadá, inteirinha.
Ainda assim, não é segredo de que existe garimpo ilegal no Brasil – onde existe alguém disposto a fazer algo direitinho, existe uma bela dúzia de gente pulando etapas. O que pode ser surpresa para você são as dimensões extremas do garimpo ilícito – e as consequências drásticas que ele pode trazer à natureza.
A Raisg (Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada) lançou um especial chamado Amazônia Saqueada. Cheio de mapas interativos, ele é fruto de um relatório que traçou, milimetricamente, as rotas de entrada e saída da mineração na Amazônia, e dos rios que são diretamente afetados por ela.
Contanto todos os países que abrigam a Amazônia (são 6: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela), existem 2.557 regiões ilegais de garimpo e extração de minerais. Os números são resultado de análises de imagens de satélite, da coleta de notícias sobre desmatamento em todos os 6 países e de notificações de comunidades ribeirinhas e indígenas. Mas os especialistas acreditam que os resultados subestimam um número ainda mais de pontos de exploração não confirmados. Ou seja: o problema já parece ruim, e a realidade pode ser ainda pior.
O relatório, aliás, diferencia “pontos” e “áreas” de garimpo. Uma área é uma região já expandida de mineração ilegal – cujas dimensões aparecem demarcadas nos mapas interativos. A maioria dos registros, no entanto, são pontuais, de garimpos menores. O problema é que, na maioria dos casos, um ponto não fiscalizado tende a se tornar uma grande área de exploração com o passar do tempo.
De todos as áreas e pontos mapeados, a maioria está na Venezuela (1899), depois no Brasil (453), Peru (134) e Equador (68). A área com a mais profunda degradação causada por garimpos de ouro é Madre de Dios, no Peru, mas a região do rio Tapajós, aqui no Brasil, se mostra como um polo importante de casos ilegais.
Maurício Torres, doutor em geografia pela USP e atualmente professor na Universidade Federal do Pará, disse à Folha de S.Paulo que a exploração nessa região brasileira começou no final da década de 1950, mas os problemas mais graves decorrentes dessa atividade são mais recentes.
Prejuízos diretos: agressão a floresta
O grande problema do garimpo ilegal é que ele vai ficando progressivamente mais prejudicial. Em Tapajós, por exemplo. Conforme o ouro superficial foi ficando mais raro, explorado lá atrás, pelos primeiros garimpeiros, os recém-chegados foram apelando para táticas mais drásticas.
As mangueiras bico-jato, por exemplo, usam água pressurizada para desmontar barrancos naturais. A lama resultante é filtrada em busca de ouro. Resultado? A prática produz grandes crateras artificiais, destrói a vegetação e prejudica toda a dinâmica orgânica da floresta.
Em 2008, de acordo com Torres e a Folha, a situação piora drasticamente: as gigantes retroescavadeiras hidráulicas (PCs) chegaram dentro da floresta. “A grande transformação da região ocorreu com a chegada das PCs. Elas geram um impacto ambiental insano. Eu arriscaria dizer que a alteração da cobertura florestal foi maior nos últimos 10 anos do que nos 50 anteriores”, explicou o geógrafo à Folha.
Prejuízos indiretos: a questão do mercúrio
Além das escavadeiras e mangueiras, a busca pelo ouro acaba trazendo outro efeito colateral muito grave: o mercúrio. Esse metal é usado na purificação do ouro. E seus resíduos contaminam a água, o ar e os animais.
Depois de usado na indústria do ouro, o mercúrio acaba retornando à natureza como metilmercúrio. Mesmo em pequenas quantidades, ele produz efeito cascata – que pode acabam prejudicando não só outros bichos, mas também seres humanos.
Tudo graças a um fenômeno conhecido como magnificação trófica (ou bioacumulação). Vamos relembrar as aulas de biologia do ensino médio: a magnificação trófica é o nome dado ao acúmulo progressivo de uma substância tóxica de um nível trófico para o outro dentro da cadeia alimentar.
Traduzindo: uma plantinha contém 0,0Xg de mercúrio acumulado. Aí vai lá o peixinho herbívoro e sacia sua fome com 20 plantinhas. Resultado: 0,Xg de mercúrio acumulado. De repente chega um peixe maior, e come 5 peixinhos pequenos. Daí fica com Xg acumulado. Quando o ser humano come 2 desses peixes maiores, termina com 2Xg de mercúrio no organismo. São 200 vezes mais mercúrio do que existia no início do processo, em um só organismo. Isso é magnificação trófica.
Essa dose final de mercúrio afeta o sistema nervoso central, causando problemas de ordem cognitiva e motora, além de perda de visão e doença cardíaca. Sua acumulação, portanto, é algo gravíssimo… E ninguém come tanto peixes quanto o povo da Amazônia, certo?
Uma das regiões mais afetadas da floresta por esse problema é o território Yanomami, que se estende entre o Brasil e a Venezuela. Em novembro de 2014, um estudo realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) coletou 239 amostras de cabelo em nove aldeias próximas a região. As amostras concentravam os grupos mais vulneráveis à contaminação: crianças, mulheres em idade reprodutiva e adultos com alguma história de contato direto com a atividade de extração de ouro. Também foram coletadas 35 amostras de peixes que são parte fundamental da dieta alimentar das comunidades.
Resultado: 92% de todas as amostras apresentavam nível elevadíssimo de contaminação de mercúrio.
Todas esse especial e essas informações foram liberadas para guiar uma nova dinâmica de proteção conjunta da Amazônia. A própria RAISG surgiu com esse propósito: em 2007, técnicos dos seis países perceberam que as informações sobre o bioma estavam dispersas pelos países que o continham, e não conversavam entre si para estabelecerem estratégias conjuntas. Com o objetivo de analisar a reunião como um organismo integral, surgiu a Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georeferenciada (RAISG).
Hoje, eles representam oito organizações da sociedade civil que atualizam constantemente bancos de dados sobre as principais ameaças à região amazônica.