Nós não precisamos repetir o quanto a Floresta Amazônica é importante, mas vamos repetir mesmo assim: além de abrigar comunidades nativas e uma biodiversidade imensa, ela contribui para a manutenção do clima em escala global. Isso inclui a absorção de doses cavalares de dióxido de carbono (CO2) – um dos gases que agravam o efeito estufa e causam o aquecimento global – por meio da fotossíntese de cada planta.
O problema é que o Brasil não cuida bem de seu quinhão desse bioma, e a degradação ambiental avança num ritmo sem precedentes nos últimos anos. Como resultado, a Amazônia está perdendo sua capacidade de absorver CO2. De fato, em algumas regiões, a floresta está se tornando uma fonte de gases causadores de efeito estufa em vez de absorvê-los. Foi o que descobriu um estudo brasileiro publicado no último dia 14, no periódico especializado Nature, e liderado por uma pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A pesquisa investigou a concentração de carbono em regiões da Amazônia brasileira com diferentes taxas de desmatamento, entre os anos de 2010 a 2018. Ao longo desse período, os pesquisadores realizaram 590 medições, coletando amostras de ar com a ajuda de aviões em cada uma das quatro regiões nas quais o bioma foi dividido para organizar o estudo: nordeste, noroeste, sudeste e sudoeste.
O pessoal do Inpe e de outras instituições descobriu que as áreas da Amazônia com mais de 30% de desmatamento apresentaram uma emissão de carbono dez vezes maior do que regiões com desmatamento inferior a 20%.
Além disso, a floresta lançou um bilhão de toneladas de CO2 na atmosfera por ano graças às queimadas, e conseguiu absorver apenas 18% dessas emissões. Assim, a Amazônia emite 0,29 bilhão de toneladas de carbono na atmosfera para além do que consegue absorver.
Em nota, David King, presidente do Grupo Consultivo para a Crise Climática (CCAG), afirmou que o estudo é “criticamente importante” e o “mais completo e extenso já realizado”. “Trata-se de uma acusação devastadora da trajetória atual [do Brasil], já que o país passou de um dos mais progressistas em termos de gestão de emissões para um dos piores. Devemos continuar a pressionar quem está no poder a reconsiderar e garantir um futuro melhor não apenas para o povo do Brasil, mas para a saúde do planeta.”
Mercedes Bustamante, representante do CCAG no Brasil, também comentou sobre o estudo e a importância de frear a degradação do bioma e investir em sua recuperação. “O destino da Amazônia é central para a solução das crises climática e de biodiversidade. Os ecossistemas amazônicos são um dos elementos mais críticos do ciclo global do carbono e do sistema climático. Atualmente, 18% da Amazônia já foi desmatada, e 17% está em processo de degradação.”
Como a pesquisa foi feita
As medições de carbono (por “carbono”, entenda dióxido de carbono, monóxido de carbono e outras moléculas com o elemento) na Amazônia são realizadas com um avião que começa a coleta de dados a 4,4 km de altitude. A partir daí, a aeronave se move gradativamente em direção ao solo, coletando várias amostras do ar em altitudes diferentes por meio de um tubo de coleta.
Sabendo as concentrações de carbono na atmosfera, os pesquisadores realizavam uma série de cálculos – que envolveram, por exemplo, análises das massas de ar que ficam se movendo de lá pra cá sobre a floresta – para entender as emissões e absorções da Amazônia em cada região, levando em consideração tanto momentos específicos do ano quanto médias anuais.
Para entender qual parcela do carbono era fruto de queimadas, os pesquisadores também faziam alguns cálculos a partir das amostras. Eles observavam as concentrações de carbono encontradas e separavam uma molécula específica que contém o elemento, o monóxido de carbono (CO). Luciana Gatti, autora principal do estudo, explica que este é um “traçador de queima de biomassa”, ou seja, um indicador de queimadas. Sua concentração no ar pode aumentar em até sete vezes quando os incêndios acontecem.
Assim, os pesquisadores identificaram, para todas as regiões e todos os anos do período estudado, o fluxo total de carbono na floresta – e calcularam quanto do carbono encontrado era fruto de queimadas e quanto era fruto de outros processos, como da decomposição de árvores. A partir disso, os cientistas puderam enxergar quanto carbono a Amazônia estava absorvendo e quanto estava emitindo durante esses anos, em cada uma das regiões.
Eles perceberam que a região do oeste da floresta, que apresenta menos de 20% de desmatamento, estava em certo equilíbrio entre a absorção e a emissão durante o período estudado. Enquanto isso, do outro lado da Amazônia, a situação era mais complicada.
As emissões totais de carbono se mostraram maiores do lado leste da floresta amazônica, com desmatamento a cerca de 30%. A região sudeste da floresta, em particular, estava emitindo uma grande quantidade de CO2 na atmosfera, além do que absorvia. Dentro da divisão empregada pelo estudo, essa é uma região que engloba o sul do estado do Pará, Maranhão, Tocantins e Mato Grosso – áreas reconhecidamente mais afetadas pela agropecuária, a grilagem de terras e outros problemas.
Para entender melhor a situação de cada região, os pesquisadores estudaram 40 anos de mudanças de temperatura e precipitação na Amazônia. Eles verificaram que as regiões com maior desmatamento apresentaram queda no volume de chuvas e um grande aumento na temperatura, principalmente na estação seca – entre os meses de agosto e outubro.
Na região sudeste da Amazônia, por exemplo, os pesquisadores encontraram um aumento de até 2,5 °C e queda de 24% no volume de chuvas durante a estação seca.
Luciana destaca a gravidade do cenário: “Nós estamos falando da Amazônia, uma floresta tropical úmida, com árvores que estão acostumadas com abundância de água e temperaturas amenas. Como a floresta fica com cada vez menos água e temperaturas cada vez mais altas durante a estação seca?”. Segundo a pesquisadora, essas condições climáticas aumentam a mortalidade das árvores da floresta.
O impacto duplo do desmatamento
Assim, os cientistas perceberam que o desmatamento tem impacto duplo sobre a floresta: representa simultaneamente uma fonte direta e indireta de carbono.
Direta, obviamente, porque as queimadas em si emitem carbono. Indireta, nas palavras de Luciana, porque “nós estamos tornando o clima muito estressante para uma floresta tropical úmida e, assim, aumentando sua mortalidade e flamabilidade – ou seja, a capacidade de pegar fogo”.
Uma maior mortalidade de árvores significa mais decomposição, que também é fonte de carbono para a atmosfera. E em uma floresta sob “estresse”, mais inflamável, algumas regiões cedem mais facilmente ao fogo que é ateado em locais vizinhos.
Isso vira um ciclo: menos chuvas e maiores temperaturas significam florestas mais inflamáveis; quanto mais queimadas, mais “estressante” é o clima para a floresta.
“Quanto mais se desmata, mais a floresta que continua em pé vai virar fonte de carbono. É como uma bola de neve, que cada vez mais amplifica as emissões de gases do efeito estufa e as mudanças climáticas”, explica Luciana.
É por isso que as áreas da Amazônia com mais de 30% de desmatamento apresentaram uma emissão de carbono dez vezes maior do que regiões com desmatamento inferior a 20%. A diferença na porcentagem é minúscula, mas suas consequências são amplificadas por esse efeito cascata.
“O sudeste da Amazônia está morrendo. As árvores que estão sobrevivendo são as árvores típicas de cerrado, que resistem melhor ao aumento de temperatura e seca”, explica Luciana. “A savanização já está acontecendo”.
Conforme a floresta sofre com a degradação ambiental, ela perde também sua capacidade de manutenção do clima – tanto a nível regional quanto nacional. Isso porque há menos árvores realizando a evapotranspiração – um processo de transferência de água para a atmosfera a partir da evaporação da água do solo e da transpiração das plantas. Isso torna o clima cada vez mais árido. Luciana resume: “Desmatando a Amazônia, estamos plantando seca”.