Orangotangos usam truques parecidos com os de beatboxers em suas vocalizações. E essa é uma descoberta importante: trata-se da primeira evidência clara de que nossos primos primatas vêm de fábrica com a aparelhagem complexa necessária para produção de vogais e consoantes.
Como a seleção natural é um processo que gera adaptações graduais nos seres vivos, seria surpreendente se o Homo sapiens tivesse evoluído a fala e o canto rapidamente, como um fenômeno isolado ao nosso ramo da árvore da vida.
É muito mais factível conceber um cenário em que espécies próximas exibem, no mínimo, versões rudimentares das nossas capacidades. Até hoje, porém, a emissão simultânea de dois sons com fontes diferentes – essencial ao beatboxing – só havia sido verificada em humanos e pássaros. Que são literalmente dinossauros, e portanto, muito distantes de nós.
Esse problema acabou. Os pesquisadores Madeleine Hardus e Adriano Lameira, da Universidade de Warwick, na Inglaterra, verificaram que os orangotangos, exatamente como nós, conseguem produzir, ao mesmo tempo, sons surdos (só com a boca) e sons vozeados (que usam as pregas vocais).
O artigo científico foi publicado no periódico especializado PNAS Nexus. Vamos explicar melhor essa história. Começando por um resumão do que você precisa saber para entender a fala e o canto humanos:
Fon-fon
Os especialistas em fonética e fonologia (uma disciplina que, nos cursos universitários, tem o apelido carinhoso de “fon-fon”) tem um jargão próprio e cabeludo para descrever os sons de vogais e consoantes.
Vide o “B”. Trata-se de um fonema bilabial, porque precisamos tocar os lábios para emiti-lo. Faça o teste, é só falar “bola” ou “bolo”. Outros fonemas bilabiais existem, como o M e o P. Para diferenciá-los, entram em cena outras palavras.
Por exemplo: o “B” é vozeado, enquanto o “P” é surdo. Isso significa que suas pregas vocais participam da emissão do “B” (note que a letra faz seu peito vibrar, é só apoiar a mão). O “P”, por outro lado, é só um estalo, feito inteiramente na boca. O “M”, por sua vez, difere dos dois por ser nasal.
Podemos falar por horas sobre fricativas alveolares vozeadas – vulgo o som da letra “Z” – e afins. Mas o objetivo desta aqui é outro: explicar que os sons consonantais vem majoritariamente da boca, com pouquíssima participação das pregas vocais. Elas só decidem o se haverá ou não vozeamento.
Os músculos da sua laringe, porém, têm outras funções. Eles decidem, por exemplo, qual nota você vai emitir quando está cantando, e qual será o “registro”: falsete (como o Prince em “Kiss”), o vocal fry (como a Britney em “…Baby One More Time”), voz de peito (como o Pavarotti em uma nota mais grave)…
Quando você murmura a melodia de uma música de boca fechada (“hmmmmmmm”), emitindo as notas sem cantar a letra ou fazer “lá lá lá”, você está usando só a laringe. Como os lábios não deixam nada sair, a ressonância acontece no nariz.
Parte do segredo de um beatboxer é separar esses dois sons: usar a laringe para uma coisa e a boca para a outra. E é isso que os orangotangos também sabem fazer.
“Por exemplo: grandes orangotangos machos na ilha de Bornéu produzem sons chamados chomps em combinação com grumbles”, diz Lamera em um release de assessoria de imprensa sobre a descoberta. “Orangotangos fêmeas na ilha de Sumatra produzem barulhos de beijo enquanto fazem rolling calls para alertar os outros de um possível predador.”
Os pássaros também são capazes de emitir dois sons simultâneos de fontes diferentes, mas seu trato respiratório é organizado de uma maneira completamente diferente do nosso. Em vez de uma laringe com pregas vocais, eles têm um órgão chamado siringe.
A siringe fica exatamente na bifurcação do sistema respiratório, onde o duto que vem do nariz se divide ao meio para enviar ar aos dois pulmões. Por causa disso, é como se cada pulmão tivesse suas próprias “pregas vocais”, e pudesse emitir sons à revelia do outro pulmão.
Esse é o segredo dos papagaios e outros pássaros que são capazes de repetir a fala humana e outros ruídos cotidianos (inclusive o clique do obturador de uma câmera): embora eles não tenham lábios ou dentes para simular nossas vocalizações na boca, o segredo da emissão simultânea de dois sons fica escondido dentro da caixa toráxica.
O que me leva a encerrar este texto com a piada infame favorita da estagiária de arte da Super, a Cris:
“Como dizia meu papagaio: como dizia meu papagaio.”