Há 1,2 milhão de anos, primatas e outros mamíferos levavam uma vida de Rei Leão no Vale do Rift, no leste da África. A vegetação e os lagos forneciam água e comida suficientes para todos os animais da região, de modo que não havia tanta competição pela sobrevivência, e os efeitos da seleção natural eram mais lentos e sutis. Por 800 milênios, esse habitat se manteve previsível, sem grandes plot twists.
Há 400 mil anos, tudo mudou. Os lagos começaram a secar, a chuva ficou escassa e os animais de grande porte, que serviam como alimento para nosso ancestrais hominídeos, deram lugar a espécies menores. A seleção natural voltou a atuar com força: agora, qualquer pequena vantagem genética já era suficiente para garantir uma prole mais numerosa. E foi assim, sob pressão das mudanças ambientais, que podem ter surgido os primeiros Homo sapiens iguais a nós.
Essa foi só a sinopse. O enredo completo foi escrito por pesquisadores do Museu Nacional de História Natural do Smithsonian, que estudaram por décadas o sítio arqueológico de Olorgesailie, localizado no Quênia. Lá, eles reuniram ferramentas, ossos e outras relíquias arqueológicas que ilustram o estilo de vida de nossos ancestrais.
Em 2018, esse grupo de cientistas já havia descrito melhoramentos notáveis nas ferramentas utilizadas pelos hominídeos que habitaram o Vale do Rift em uma época imediatamente anterior ao surgimento do Homo sapiens.
Entre 1,2 milhão de anos e 500 mil anos atrás, as pessoas que viviam na região pareciam usar pedaços de rochas afiados, chamados “machados de mão”, para realizar tarefas cotidianas. Já os hominídeos que ocuparam o espaço pouco depois, há 320 mil anos, já tinham recursos mais avançados. Eles trituravam rochas coloridas para extrair pigmentos. E passaram a produzir suas ferramentas com rochas de origem vulcânica chamadas obsidianas.
E daí? Bem: análises químicas feitas nas obsidianas mostram que elas não foram extraídas naquela região. Na verdade, viajaram entre 25 km e 95 km para chegar até ali. A hipótese é que outros grupos transportaram esses materiais e comercializaram as peças. Estes seriam os indícios mais antigos de seres humanos criando redes sociais.
A descoberta dos pigmentos também cutuca consensos bem estabelecidos. A maioria dos arqueólogos concorda que as primeiras pinturas rupestres surgiram como parte de uma revolução criativa ocorrida há 60 mil anos. O uso de pigmento por estes sapiens pioneiros 300 mil anos antes põe em cheque essa data. É possível que a arte seja mais antiga que nossa própria espécie.
O grosso dessas mudanças, descritas no artigo científico de 2018, ocorreu entre 500 mil e 320 mil anos atrás. Que mudanças no ambiente motivaram a evolução biológica dos futuros sapiens em uma janela de tempo tão curta para os padrões geológicos, de “apenas” 180 mil anos? Esse é o foco de um novo artigo da equipe do Smithsonian, publicado quinta (22) no periódico especializado Science.
Conforme escavamos o solo, encontramos camadas de rochas mais antigas. Elas nos dão pistas sobre o clima e a vegetação que predominava em um lugar no passado. O sítio arqueológico investigado não continha muitas rochas de 500 mil anos atrás, que é justamente a época analisada. Elas foram destruídas pela erosão. Por isso, foi preciso perfurar um outro local, a 24 km de distância. Lá, os arqueólogos removeram 139 metros de terra.
Assim, puderam observar o que aconteceu há 400 mil anos. As alterações no ambiente foram resultado da atividade tectônica do local, que fragmentou a paisagem (o Vale do Rift fica em uma região com fissuras nas placas litosféricas, onde o relevo é acidentado e há uma grande possibilidade de terremotos).
Mudanças no relevo mexeram com a geografia das bacias hidrográficas. Houve alterações na direção em que cada rio corria, e alguns deles podem ter passado a desaguar em lagos ou mares diferentes. Essas bacias novas eram mais sensíveis a mudanças nas chuvas do que as anteriores. O terreno mais elevado fazia a água escoar mais rápido, tornando os períodos de seca ainda mais secos. E as chuvas escassearam.
Os grandes animais herbívoros perderam seus pastos. Richard Potts, um dos autores do estudo, explica que ancestrais dos elefantes, zebras, e hipopótamos morreram neste período. Animais menores e menos dependentes de água doce, como antílopes e babuínos, ocuparam os nichos deixados por essas espécies e seguem na África Oriental até hoje. Estes animais foram capazes de se ajustar às perturbações do ambiente.
E nós também: nada melhor que uma crise climática para incentivar a transferência de tecnologia entre povos e o desenvolvimento de novas tecnologias (é importante entender que pigmentos e pedras mais afiados eram tão inovadores na época quanto iPhones são hoje). “Gastar mais tempo com tecnologia e na troca social de recursos e informações com grupos distantes é importante na forma como tribos de caçadores-coletores respondem às pressões ambientais nos dias de hoje”, explicou Potts.
No sítio arqueológico, foi encontrado apenas uma ossada humana que data de 900 mil anos atrás. Não há humanos anatomicamente modernos. De toda forma, os artefatos de 320 mil anos encontrados no Vale do Rift são geralmente associados ao Homo sapiens. É certo que os pesquisadores estão lidando com um ancestral que já exibia um grau de semelhança muito grande conosco.
Se nós nos transformamos em resposta a mudanças ambientais no passado, será que o mesmo ocorrerá no futuro? “Quanto ao futuro, é difícil dizer o que vai acontecer. Uma vez que novos ambientes sempre apresentam um desafio à maneira como humanos e outras espécies vivem e sobrevivem, uma questão levantada por nossas descobertas é se as pessoas podem continuar a desenvolver novas tecnologias e criar redes sociais para resolver, hoje, o desafio das mudanças ambientais em todo o globo”.