Nas aulas de química do ensino médio, tudo são bolinhas. As proteínas são como colares de contas microscópicos, em que cada miçanga é um aminoácido. Os carboidratos têm um carbono ali, cinza, um oxigênio aqui, vermelho. Até a água vira LEGO: uma molécula pequena e gordinha, feita por três círculos encaixáveis.
Acontece que essas são só representações. Da mesma maneira que os mapas de metrô reduzem cidades caóticas a linhas retas e cores primárias, os livros didáticos transformam biomoléculas — os compostos químicos da matéria viva — em formas geométricas mais fáceis de entender.
Isso deixa uma pergunta no ar: o que nós veríamos se existisse um microscópio capaz de ‘tirar fotos’ de uma molécula de proteína ou carboidrato? Afinal, se um túnel de metrô real não é uma linha colorida, mas sim uma caverna de concreto longa e úmida, não há motivos para acreditar que as biomoléculas dos livros sejam iguais às reais.
Bem, em 1990 essa ainda era uma pergunta mais ou menos sem resposta. Já se conhecia bem o corpo humano e sua bioquímica, mas era muito difícil observá-lo em escalas tão pequenas. Foi aí que o suíço Jacques Dubochet, o alemão Joachim Frank e o britânico Richard Henderson criaram um método chamado crio-microscopia eletrônica – que lhes rendeu o Nobel de Química de 2017.
O nome é feio que dói, mas a técnica é valiosa: graças a ela, médicos puderam dar closes em coisas como o vírus da zika – para então analisar sua estrutura e criar novos remédios para combatê-lo (na imagem abaixo, c). Também foi possível observar de perto as proteínas que governam os ritmos circadianos, e entender nosso relógio biológico (a). Outra opção é dar uma olhada nos sensores de pressão minúsculos que existem no interior dos nossos ouvidos (b). Essas são só algumas das portas que a técnica abriu. Segundo o anúncio oficial do prêmio, mais de mil estruturas orgânicas antes invisíveis ganharam ‘retratos falados’ em HD após a invenção da crio-microscopia eletrônica.
“Ótimo, então quer dizer que os caras inventaram o zoom mais animal da história?
Então… sim e não. Nós só enxergamos objetos porque a luz – seja do Sol ou de uma fonte artificial – bate neles, é refletida e alcança os nossos olhos. Câmeras profissionais e microscópios tradicionais usam lentes para manipular essa luz refletida e fazer as coisas parecem mais próximas ou maiores do que elas realmente estão. A luz visível é feita de ondas, e ondas têm comprimento. Se o objeto observado for menor do que o comprimento de onda da luz – caso de uma proteína – ela vai passar reto por ele, sem ser refletida. Nós ficamos, ao pé da letra, no escuro.
A primeira tentativa de evitar esse problema data da década de 1930, quando o pesquisador alemão Ernst Ruska – que também ganharia um Nobel, em 1986 – descobriu que lançar feixes de elétrons contra coisas minúsculas era um ótimo jeito de observá-las com precisão. A técnica passou a ser conhecida como ‘TEM’.
A TEM tradicional tem vários problemas: um é que ela ‘frita’ as biomoléculas. E uma observação que destrói o item observado não adianta muita coisa. Outra é que ela só funciona no vácuo – onde as proteínas ressecam e perdem suas características originais.
O vencedores do Nobel desse ano venceram as duas limitações: de um lado, diminuíram a potência do feixe para não torrar as amostras. Isso diminuiu a definição das imagens de uma tela IMAX para uma TV de tubo. Para compensar a limitação, eles tiraram mais fotos de ângulos distintos, e somaram todas no computador. Mais ou menos como o Google Street View processa milhões de fotos para criar a ilusão de que você pode passear pela cidade sem levantar da cadeira. Bingo, a menor qualidade foi substituída por mais quantidade.
Do outro, congelaram as amostras muito rapidamente – para que eles não ressecassem e mantivessem sua forma original por tempo o suficiente para serem fotografadas pelos feixes enfraquecidos. O que o resfriamento faz, essencialmente, é pausar na vida – e dar uma oportunidade de vê-la mais de perto.
Essa combinação poderosa é para a escala atômica o que as ondas gravitacionais são para a escala cósmica: um novo par de olhos para desvendar mistérios antes inacessíveis.