No auge da pandemia de Covid-19, cientistas ao redor do mundo passaram a pesquisar se algum medicamento já existente poderia ter algum efeito em combater a infecção pelo coronavírus. Não é exatamente uma novidade: essa estratégia, conhecida como reposicionamento de fármacos, é uma velha conhecida da medicina e, eventualmente, descobre novos usos para substâncias já presentes no mercado.
É o caso, por exemplo, da toxina botulínica – o botox. Inicialmente, ela era usada no tratamento do estrabismo. Hoje, é amplamente empregada em procedimentos estéticos e, mais recentemente, em tratamentos de doenças como a enxaqueca. O reposicionamento, contudo, pode ser uma aposta arriscada, já que exige tempo, dinheiro e testes complexos – que nem sempre terminam em resultados positivos.
Agora, uma equipe de cientistas da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, desenvolveu um método que consegue prever se determinado medicamento pode se mostrar promissor contra outras doenças para além da qual foi originalmente desenvolvido. O modelo se baseia em uma inteligência artificial (IA) que reúne uma enorme base de dados de pacientes para estimar os possíveis impactos que remédios já existentes podem ter.
Atualmente, medicamentos que são candidatos para tratamentos de doenças passam pelos chamados ensaios clínicos randomizados controlados . Nesses estudos, são testadas substâncias novas ou remédios já conhecidos do mercado. Os voluntários são divididos aleatoriamente em dois grupos, sendo que um recebe o medicamento em questão e outro um placebo, sem que saibam qual dos dois estão tomando (daí o nome randomizado: é uma adaptação para o português da palavra random, que significa aleatório em inglês). Assim, consegue-se observar se o grupo que recebeu o medicamento apresenta resultados melhores do que o que não recebeu.
Esse método é padrão na medicina e não será substituído tão cedo. Porém, tem um problema: são testes demorados e complexos, e podem não dar retorno se o medicamento não funcionar. É aí que entra o novo software, que promete ser capaz de selecionar as melhores candidatas a serem testadas, otimizando o processo.
Colocando o robô para trabalhar
No novo estudo, publicado na revista Nature Machine Intelligence, os pesquisadores testaram a inteligência artificial para selecionar especificamente medicamentos a serem testados contra doenças cardiovasculares. A equipe usou dados de quase 1,2 milhão de pessoas com doenças cardíacas enviados a empresas de seguro de saúde. Entre as informações, havia números sobre os tratamentos usados pelos pacientes, os seus resultados, a progressão da doença e vários outros fatores (como sexo, idade, raça dos pacientes), que podem afetar a doença e seu tratamento das mais diferentes formas.
Além disso, a inteligência artificial foi alimentada com uma enorme literatura farmacêutica – ou seja, dados sobre uma grande variedade de medicamentos que já existem no mercado, incluindo sua composição, mecanismo de ação e por aí vai. O software, então, combinou essas informações com os dados dos pacientes (que foram atualizados por dois anos) a fim de identificar possíveis medicamentos que tivessem melhores resultados para tratar as doenças cardíacas.
No teste, a IA encontrou nove remédios que poderiam fornecer benefícios terapêuticos aos pacientes. Dentre eles, três já são usados para esse tipo de doença. Dos outros seis indicados, um medicamento para diabetes e outro para depressão também estão atualmente sendo testados para reduzir o risco de insuficiência cardíaca. Eles apresentaram resultados promissores em testes preliminares.
Segundo a equipe, os resultados mostram que o modelo é eficaz e poderá ser usado para outras doenças também. Uma das vantagens é que a inteligência artificial, ao contrário dos humanos, consegue trabalhar com muitos dados ao mesmo tempo (lembre-se: o estudo avaliou informações de mais de um milhão de pessoas), incluindo diversos “fatores de confusão”, que podem levar a conclusões erradas e espúrias se não forem controladas – como por exemplo a idade dos participantes, já que se um grupo incluir muitas pessoas jovens e outro muitos idosos, os resultados precisam ser corrigidos para essas variáveis.
“Este trabalho mostra como a inteligência artificial pode ser usada para ‘testar’ uma droga e acelerar a geração de hipóteses e, talvez, um ensaio clínico”, disse em comunicado Ping Zhang, professor de informática biomédica e autor do estudo. “Mas nunca substituirá o profissional de saúde – as decisões sobre medicamentos utilizados sempre serão feitas pelos médicos.”