Parece um trecho de Crônicas Marcianas, de Ray Bradbury, mas é verdade: Marte, à noite, é castigado por tempestades de neve, com ventos que alcançam 36 quilômetros por hora. A violência dos temporais não chega aos pés de uma tradicional chuva de verão paulistana, é claro – afinal, a Terra tem uma atmosfera muito maior, mais densa e mais dinâmica que a do Planeta Vermelho. Mas essa “chuvinha” gelada é mais do que o suficiente para ser motivo de preocupação de futuras missões espaciais, que não estão acostumadas a lidar com fenômenos climáticos de outro planeta.
Já se sabe há algum tempo que há água em Marte, ainda que em pequenas quantidades. No final do ano passado, rios temporários de água salgada foram avistados nos últimos dias do verão marciano – a notícia não só foi boa como rendeu ótimas piadas. Na mesma época, foi descoberto em uma região de latitude intermediária um depósito de gelo subterrâneo do tamanho do Lago Superior, nos EUA (o terceiro maior lago do mundo em volume). E como se esquecer dos polos marcianos – que, como os nossos, passam o ano cobertos de neve?
Outra característica já familiar de Marte são suas nuvens, que, por causa de condições únicas de pressão e temperatura, se formam mesmo apesar da baixa concentração de vapor de água na atmosfera. O comportamento do céu de algodão doce marciano pode ser (e é) calculado com relativa precisão por simulações de computador, mas essa espécie de “previsão do tempo”, feita aqui da Terra, não é potente o suficiente para dar um panorama detalhado do clima do Planeta Vermelho – necessário quando algum ser humano finalmente for colocar os pés ali.
Esse problema acaba de ser resolvido pela equipe do astrônomo francês Aymeric Spiga, que combinou três simulações atmosféricas marcianas diferentes para criar um só modelo extremamente preciso – que já começou a mudar o que cientistas planetários sabiam sobre o próximo destino da civilização.
Para entender o impacto desse avanço na meteorologia alienígena, é bom recapitular: a primeira “nevasca” extraterrestre registrada pelo ser humano foi fotografada pela sonda Phoenix em 2008. Na época, pesquisadores calcularam que flocos de neve minúsculos – até mil vezes menores que as gotas d’água com que estamos acostumados – levariam cerca de quatro horas para cair um ou dois quilômetros, e se dissipariam na atmosfera antes de tocar o chão. Uma garoa bem, bem pacífica.
O modelo de Spiga, que você pode conhecer em detalhes no artigo científico, atualizou o tempo de queda para algo entre cinco e dez minutos. E esse foi só o começo. Por não ter gás carbônico quase nenhum em sua atmosfera, Marte é incapaz de manter sua superfície aquecida durante a noite – no verão, as temperaturas médias são de 20ºC na hora do almoço e -78ºC quando o Sol vai embora (curiosos podem ver as médias anuais aqui antes de comprar uma casa de praia por lá).
Variações de temperatura bruscas não causam só desconforto térmico. Aprendemos nas aulas de física que o ar quente, mais agitado, gosta de subir – e o ar frio, mais calmo, gosta de descer (essa é a dinâmica responsável, por exemplo, pelo fenômeno da inversão térmica). Em Marte, nuvens que flutuam entre 10 e 20 quilômetros de altura absorvem bastante calor do dia, e esse calor, por causa da regra acima, ajuda a mantê-las lá em cima.
Quando chega a noite, porém, a temperatura das “felpudas” diminui cerca de 4ºC por hora. Mais frias, eles começam a perder altitude. O ar quente que estava próximo à superfície, por sua vez, sobe em direção ao espaço. É justamente a interação entre essas duas massas de ar, agitadas pela troca de posição, que gera os ventos de 36 quilômetros por hora – arrastando muitas partículas de água congelada para o chão no processo, que chega ao auge às duas da manhã. Na Terra, ventos dessa velocidade não são o suficiente nem para impedir voos comerciais. Em atmosferas rarefeitas, porém, a turbulência é mais intensa – o que pode tornar o pouso o momento mais ingrato da viagem. Na dúvida, é melhor ligar para Han Solo.