HHavia 16 patógenos na lista, escritos em garranchos espalhados pela página. Ao lado de cada um deles estava o período de incubação, o meio de transmissão e a mortalidade esperada. A peste pneumônica, que acontece quando a bactéria Y. pestis infecta os pulmões, estava no topo. Se não for tratada, é letal em 100% dos casos. Abaixo havia alguns nomes de epidemias do passado, como cólera e antraz. Mas o que surpreendeu o general Richard B. Myers foi outra coisa: a maioria dos itens da lista não afetava humanos. Ferrugem do trigo, brusone do arroz, febre aftosa, peste suína. Eram armas biológicas para atacar o sistema global de produção de alimentos.
Myers era o diretor do Joint Chiefs of Staff, o conselho militar mais poderoso dos EUA, quando marines encontraram essa lista num complexo de cavernas no Afeganistão, em 2002. Naquele mesmo ano, outra fonte de inteligência reportou a presença de membros da Al Qaeda no norte do Iraque, onde estavam testando vários patógenos em cães e bodes. “Que eu saiba, eles nunca obtiveram a capacidade de usar [armas biológicas] num contexto de batalha”, afirma Myers. “Eu acho que existem informações, provavelmente confidenciais, que mostrariam a você que não é o caso – mas eu não tenho conhecimento delas, ou não posso falar sobre elas.”
Mas, mesmo se a Al Qaeda tiver desistido, outros grupos parecem ter pegado o bastão do bioterrorismo. Em 2014, um velho laptop Dell encontrado num esconderijo do ISIS no norte da Síria – o “laptop do apocalipse”, como foi apelidado pela imprensa americana – continha instruções detalhadas de como produzir e espalhar peste bubônica por meio de animais contaminados.
Para um aspirante a bioterrorista, diz Myers, as fazendas são um “alvo fácil”. Elas têm pouca segurança, e não é especialmente difícil produzir e espalhar patógenos eficazes. A febre aftosa, que tem esse nome porque causa grandes aftas (bolhas) nas línguas, bocas e patas de bois, vacas, porcos e outros animais, é tão contagiosa que a descoberta de um único caso geralmente requer o sacrifício de rebanhos inteiros para evitar que a doença se espalhe.
O setor agrícola também é altamente concentrado: três estados fornecem 75% de todos os legumes e verduras dos EUA, e 2% dos rebanhos bovinos produzem 75% da carne. E, acima de tudo, tanto as plantas quanto os animais são geneticamente uniformes (nos EUA, 25% de todo o gado Holstein descende de apenas cinco touros – sendo que apenas um deles, o Arlinda Chief, é o pai de quase 14%).
As plantações e os rebanhos são monoculturas, extremamente vulneráveis a doenças. Um prato cheio para pestes e patógenos. Com ou sem a ação de terroristas, o mundo está tão sujeito a uma pandemia agrícola quanto à Covid-19 – e possivelmente menos preparado para enfrentá-la.
Para diagnosticar doenças mortais e desenvolver tratamentos e vacinas, os cientistas precisam trabalhar com os patógenos. Mas muito poucos laboratórios são seguros o suficiente. O único lugar onde pesquisadores dos EUA podem estudar a febre aftosa, por exemplo, é o Plum Island Animal Disease Center, construído numa ilhota a 12 km da costa de Connecticut. Ele tem a vantagem de possuir uma barreira sanitária natural – o mar.
Mas foi inaugurado em 1954, e seus laboratórios estão desatualizados. Não têm a certificação BSL-4 (Nível de Biossegurança 4), o patamar mais alto de segurança. Os laboratórios desse nível, como explica o Centers for Disease Control (CDC) americano, são os únicos habilitados a trabalhar com micróbios “perigosos e exóticos, com alto risco de infecções transmitidas pelo ar”.
Costumam ser vírus capazes de infectar animais e humanos, e que não têm cura. O ebola é um deles. Os vírus Nipah e Hendra, que emergiram recentemente, também. No mundo, existem apenas três laboratórios BSL-4 equipados para trabalhar com animais grandes, como bois. Um fica no Canadá, o outro na Austrália e o terceiro na Alemanha.
Isso irá mudar neste ano, com a inauguração do National Bio and Agro-Defense Facility (NBAF), um laboratório de US$ 1,25 bilhão construído pelo governo dos EUA na cidade de Manhattan, Kansas, bem no coração agrícola do país. O NBAF segue a tendência moderna no controle de doenças infecciosas: em vez de empregar uma barreira geográfica para garantir sua segurança, como em Plum Island, ele usará medidas tecnológicas extremas. Dentro do NBAF, cercados por plantações de milho e rebanhos de gado, cientistas trabalharão para proteger a produção de alimentos de uma eventual peste.
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Nós visitamos a construção do NBAF, que ocupa uma área de 50 acres, durante um dia úmido na primavera de 2019. O lugar foi escolhido após uma seleção que durou três anos, em parte por causa da expertise local: a região já abriga o Biosecurity Research Institute, um laboratório BSL-3 inaugurado em 2007.
O senador americano Tom Daschle chamou a área de “Vale do Silício da biodefesa”. Mas a escolha do local recebeu críticas, e dá para entender o motivo. Um laboratório projetado para trabalhar com as doenças animais mais devastadoras que existem, num estado onde há dez vezes mais gado do que gente.
Se a febre aftosa vazasse dele, infectaria facilmente os rebanhos dos estados vizinhos, que reúnem quase metade de todo o gado do país, e poderia causar até US$ 50 bilhões em danos. E tem o clima local também: Kansas é conhecido pelos tornados.
Segundo um estudo encomendado pela National Academy of Sciences, a probabilidade de um patógeno escapar do NBAF durante a vida útil do complexo, 50 anos, é de impressionantes 70%. Em resposta a essa preocupação, o Department of Homeland Security, divisão do governo responsável pela construção do laboratório, reforçou as estruturas para torná-las capazes de resistir a um tornado da Categoria 5, a mais intensa de todas – e aí encomendou outra avaliação, que estimou em 0,1% o risco de vazamento do laboratório.
A mudança é visível nas estruturas do NBAF, que têm uma enorme quantidade de concreto. “Foram uns 45 mil metros cúbicos [equivalente a 90 piscinas olímpicas], aplicados ao longo de dois anos e meio”, diz Ron Trewyn, um ex-oncologista que dirigiu a campanha para construir o laboratório. E é um concreto especial, que passa por uma reação química e se expande depois de secar, impedindo o surgimento de rachaduras.
O NBAF também possui janelas resistentes a impactos e explosões, revestidas por uma malha de ferro que atende às normas da Nuclear Regulatory Commission [agência que fiscaliza as usinas nucleares nos EUA]. “Mas, no caso de um tornado, o problema são as pressões”, diz o diretor técnico do projeto, Eugene Cole.
As salas de um complexo BSL-4 são mantidas em pressão negativa, menor que a do ambiente externo. Isso garante que, se houver um vazamento, o ar será sugado para dentro do prédio. Mas se um tornado causar uma queda repentina na pressão externa do ar, esse fluxo pode se inverter [com escape de ar para o meio externo]. Segundo Cole, a construção do NBAF levou em consideração essa possibilidade – e o laboratório terá sistemas barométricos capazes de se autorrecalibrar rapidamente.
Ele compara um BSL-4 a um bolo com várias camadas. No andar mais baixo fica o “gerenciador de efluentes” [sistema de tratamento de resíduos]. Depois vem o laboratório propriamente dito, onde os cientistas trabalham. Acima há um andar só com filtros, outro com bombas e equipamentos mecânicos, e uma “cobertura” com uma saída de ventilação [que libera ar tratado].
Todos os canos, dutos e cabos ficam em compartimentos isolados – mas também podem ser acessados para testes e consertos preventivos. O prédio é gerenciado por um sistema automático de computadores, que praticamente dizem aos funcionários da manutenção o que eles devem fazer.
O NBAF é maior e melhor que seu vizinho, o Biosecurity Research Institute. Um dos avanços está no descarte de carcaças dos animais. O laboratório mais antigo tem um sistema que dissolve os bichos mortos numa sopa alcalina. Os ossos e dentes viram um pó de cálcio, que é separado e incinerado. Fora isso, sobra apenas um líquido gosmento, que é estéril o suficiente para jogar no sistema municipal de esgoto.
O único problema é que esse líquido ainda está tão cheio de material orgânico que pode facilmente sobrecarregar as estações de tratamento da cidade. Por isso, antes de cada descarga, o laboratório “precisa ligar para a empresa municipal de água e perguntar se eles estão prontos para receber aquela meleca”, diz Cole. Ela geralmente é liberada durante a madrugada – quando os corpos de animais liquefeitos descem pelos esgotos da cidade enquanto os moradores dormem tranquilos, sem saber de nada.
No novo laboratório, diz Cole, “as carcaças não serão jogadas no ralo”, pois o NBAF tem duas autoclaves. “Basicamente, [cada autoclave] é uma grande panela de pressão com um mexedor”, diz ele. O líquido que sai das autoclaves pode ser usado como fertilizante. Mas, por cautela, será armazenado em tambores de 200 litros e depois incinerado.
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O primeiro complexo de isolamento biológico do mundo foi um “hospital da peste”, ou lazaretto, construído numa ilha de Veneza em 1425 para proteger a cidade da Peste Negra. De lá para cá, os locais e sistemas de confinamento falharam várias vezes.
Na década de 1780, por exemplo, um guarda do lazaretto de Split, na Croácia, surrupiou de lá um belo cachecol branco, com o qual presenteou a esposa. Ao fazer isso, espalhou pulgas contaminadas com a peste bubônica – que matou 10% da população da cidade.
Na década de 1830, o capitão de um navio em Boston aproveitou que a baía estava congelada e foi a pé da Quarantine Island, onde havia um hospital de infectados por cólera, até o continente, a 8 km dali – o que causou uma onda de pânico na cidade.
Em outros casos, os patógenos simplesmente pegaram carona em humanos sem que ninguém notasse nada. Acredita-se que a ferrugem do trigo, uma doença causada por fungos que mata até 40% das lavouras, tenha chegado à Austrália na barra da calça de um viajante.
O principal meio pelo qual se espera que material contaminado escape do NBAF é erro humano – o calcanhar de Aquiles de lazarettos e laboratórios ao longo da história. “A causa sempre são as pessoas”, diz Trewyn. Obviamente, o NBAF foi projetado para diminuir esse risco. Nele, pessoas, animais e objetos só podem se deslocar na mesma direção, de fora para dentro do complexo.
Tudo (incluindo as carcaças) só pode sair lá de dentro após passar por câmaras e tanques de desinfecção ou autoclaves. A exceção são as pessoas, que têm de passar por dois chuveiros químicos e um chuveiro comum. As precauções alcançam até a vida pessoal dos cientistas, que foram proibidos de criar galinhas (para reduzir riscos caso um deles leve um patógeno para casa sem saber).
Mesmo com tudo isso, o National Research Council [um órgão científico do governo americano] reclamou, dizendo que aquela estimativa de 0,1% de risco de vazamento no NBAF foi “baseada em cálculos excessivamente otimistas e não comprovados das taxas de erro humano”. (Ela também não leva em conta a possibilidade de atos propositais.)
A ilha de Plum e outros laboratórios espalhados pelo mundo tiveram vários episódios de quase vazamento. Mas Trewyn acredita que vale a pena correr o risco. As doenças vão chegar aos EUA de qualquer maneira, diz. Ele cita dois casos bem diferentes, causados por surtos da mesma doença no Reino Unido.
Em 2007, o vírus da febre aftosa escapou do Pirbright Institute, um complexo de laboratórios em Surrey, no sul da Inglaterra, com a ajuda de fortes chuvas e canos sem manutenção. Ele foi rapidamente detectado e contido. Horas após o primeiro caso, o governo proibiu a movimentação de gado pelo país; dois meses mais tarde, o vírus estava contido, tendo infectado apenas oito fazendas. O sistema funcionou, diz Trewyn. Especialmente se comparado a um episódio bem diferente, ocorrido seis anos antes.
Foi em Northumberland, no extremo norte inglês, em 2001. Carne suína contaminada, que provavelmente havia sido importada da Ásia de forma ilegal, foi usada para alimentar porcos, detonando uma epidemia nacional de febre aftosa. O governo enviou soldados para ajudar a sacrificar os rebanhos afetados. Seis milhões de ovelhas, porcos e bois morreram. Correram o mundo as cenas de fazendas inglesas com grandes fogueiras incinerando pilhas de animais mortos, trazidos com escavadeiras. Ao final da epidemia, pelo menos 60 fazendeiros haviam se suicidado.
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Uma das prioridades do NBAF será desenvolver um tratamento ou vacina para a peste suína africana. Trata-se de uma doença hemorrágica altamente contagiosa, que não infecta humanos mas matou 25% de todos os porcos do mundo nos últimos anos. Os sintomas são idênticos aos da cólera suína, que era o décimo item na lista de armas biológicas da Al Qaeda: vômitos, diarreia, febre e coloração azul-arroxeada do focinho, do rabo e das orelhas, tipicamente seguida de uma morte rápida.
A peste suína africana ainda não foi detectada nos Estados Unidos. Mas, na China, o vírus infectou pelo menos 40% da população de porcos entre 2018 e 2019 – e o preço da carne suína mais do que dobrou. Segundo uma investigação feita em 2019 pela Xinhua, a agência de notícias estatal, grupos criminosos se aproveitaram da epidemia.
Em alguns casos, eles usaram drones para jogar ração contaminada em fazendas que ainda não haviam sido afetadas pela doença. Assim que os animais eram infectados, os bandidos se apresentavam como interessados em comprá-los por um preço muito baixo. Em seguida, os revendiam em outra província. A reportagem afirma que um grupo chegou a contrabandear 4 mil animais infectados num único dia, subornando fiscais e falsificando certificados de quarentena.
Em resposta a isso, um fazendeiro instalou um sistema antidrones – que acabou afetando os sistemas de navegação de aviões que passavam pela área. A empresa Yangxiang, maior produtora de carne de porco da China, construiu um complexo de prédios para criar seus animais em segurança [são quatro prédios, com sete andares cada um, na região das montanhas Yaji, no norte do país].
Cada andar, com capacidade para 1.300 porcos, tem um sistema independente de circulação e desinfecção do ar. Os funcionários vivem no complexo e tem de passar dois dias em quarentena a cada vez que saem e retornam. Um fazendeiro de Hunan, no sul da China, disse ao New York Times que os porcos se tornaram tão raros na sua região que, quando ele transporta os animais, junta gente em volta do caminhão. “É como se eles estivessem vendo um panda”, afirmou.
Cinquenta países, da Polônia às Filipinas, já confirmaram casos da peste suína africana em seus rebanhos. A Dinamarca começou a construir uma cerca, para evitar a passagem de porcos selvagens e do vírus, em toda a sua fronteira com a Alemanha. Na Austrália, cães farejadores nos aeroportos cheiram todas as bagagens – para interceptar todo tipo de carne de porco antes que ela entre no país. O vírus sobrevive por meses em superfícies e também na carne, mesmo cozida e processada.
“Só um país conseguiu erradicar essa doença”, disse em 2019 o ministro da agricultura da Austrália. Ele estava se referindo à República Tcheca, cujo programa durou quatro anos. “Eles mandavam o Exército para as florestas, noite após noite, para atirar em absolutamente todos os porcos selvagens.”
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Para muitos especialistas, a questão não é se as medidas antivazamento do NBAF vão falhar, mas o que os Estados Unidos vão fazer quando a peste suína africana finalmente chegar.
Em 2013, mais de 10% do rebanho de porcos do país morreu numa epidemia de diarreia suína – o vírus veio nos sacos reutilizáveis usados para transportar a ração. Os criadores foram orientados a implantar protocolos de desinfecção na entrada das fazendas, proibir o acesso de visitantes de outros países, e inspecionar as marmitas dos funcionários para se certificar de que não têm bacon ou salsichas.
Desde que as tropas do general Myers descobriram a lista da Al Qaeda numa caverna afegã, houve um enorme investimento em pesquisas científicas, mas pouco planejamento local. O sacrifício em grande escala de animais infectados, que os especialistas chamam de “atividades de despopulação”, pode ser logisticamente muito difícil.
Quando o governo da Holanda teve de matar quase 11 milhões de porcos, em 1997, a única saída foi usar estações móveis de eletrocussão (os animais eram forçados a andar sobre uma placa de metal molhada enquanto recebiam uma descarga elétrica na cabeça).
Em 2015, 38 milhões de frangos, patos e perus tiveram de ser mortos em Iowa, nos EUA, por causa da gripe aviária. Os lixões locais pararam de aceitar as carcaças, por medo de serem processados pelos vizinhos, e os bichos mortos ficaram apodrecendo nas fazendas.
Nos EUA, o governo indeniza os fazendeiros pelos animais sacrificados. Mas o problema está na divisão de responsabilidades e poderes entre os governos estaduais e federal. “Como você faz para bloquear o sistema de transportes, e garantir que animais doentes não estão sendo movidos de um lado para outro do país, infectando mais rebanhos?”, pergunta Myers. “Que autoridade nós temos para impedir isso?” Essas lacunas – jurídicas, administrativas, logísticas, financeiras – são perturbadoramente familiares. Porque são as mesmas questões que atrapalharam o combate à Covid-19.
Ao longo da sua carreira militar, conta Myers, ele participou de vários exercícios em que agências do governo simulavam uma resposta a epidemias em animais. Todas as simulações tiveram quase exatamente o mesmo desfecho: com a doença saindo do controle, e a USDA (ministério da Agricultura dos EUA) pedindo socorro. “Quando nós chegávamos ao ponto em que eles diziam: ‘agora vamos falar com o Department of Defense (DoD) para pedir ajuda’, a simulação terminava”, diz Myers.
“Ridículo, certo? O exercício terminava ali. E nós, do DoD, nunca pudemos treinar e determinar o que seria necessário [para conter a doença]. É comunicação, é segurança, são helicópteros? O que é?”, questiona o general. O NBAF pode ser a melhor aposta para garantir que ninguém, nunca, terá de saber o que acontece depois.
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Trecho do livro Until Proven Safe: The History and Future of Quarantine (“Até que se prove seguro: a história e o futuro da quarentena”, não lançado no Brasil), escrito por Geoff Manaugh e Nicola Twilley e publicado nos EUA pela editora MCD/Farrar.