Denis Russo Burgierman
Simone é uma jovem simpática que trata bem a todos. Se um sujeito mal-encarado a aborda de surpresa numa rua escura, ela o recebe sorridente e se aproxima como quem quer fazer amizade. Ou até iniciar um namoro. Como você deve imaginar, Simone (o nome é falso) teve um monte de relacionamentos fracassados e já foi passada para trás por muita gente em quem confiou. Mas, por mais que a vida lhe dê lições, ela nunca aprende. Continua afável e gentil com todos. Jamais desconfia de ninguém. Simone não tem medo. Nunca.
“Ela vê o mundo sempre pelo lado positivo”, disse à Super o neurologista português António Damásio, médico de Simone. Isso pode parecer uma qualidade, mas tente imaginar como é a vida de uma pessoa que não fica alerta para atravessar a rua, não se preocupa quando entra no mar, não se recolhe quando o chefe está de mau humor, não distingue rostos confiáveis dos ameaçadores. Numa palavra: manter Simone viva é um desafio para sua família e seus médicos.
Felizmente, ao contrário de Simone, a maioria da humanidade tem – e sempre teve – medo. O homem não é a espécie mais forte sobre a Terra, nem a mais ágil. Talvez não seja nem a mais esperta, se levarmos em conta as decisões autodestrutivas que tomamos de vez em quando. Mas de uma coisa podemos nos orgulhar: somos os mais medrosos. Não fosse isso, é provável que jamais tivéssemos chegado até aqui. A civilização é fruto do medo que temos da desordem, as cidades nasceram do pavor da natureza, a ciência é filha do terror que o desconhecido causa, as religiões, as armas, a diplomacia, a inteligência. Devemos tudo isso ao medo que falta a Simone.
“Esse sentimento é absolutamente necessário”, afirma Damásio, que, além de tratar Simone no hospital da Universidade de Iowa, Estados Unidos, é um dos mais importantes neurocientistas do mundo, autor de best-sellers como O Erro de Descartes, sobre o papel fundamental das emoções. Damásio define medo como uma emoção fabricada pelo cérebro, que provoca mudanças no corpo todo (veja infográfico na página ao lado), deixando-nos mais alertas, fortes e cuidadosos – prontos para lutar ou fugir.
Medo, é claro, não é monopólio da humanidade. “A planta mimosa, que fecha quando alguém encosta, se retrai diante de um indício de perigo. Podemos chamar a isso de medo”, diz César Ades, estudioso de comportamento animal da Universidade de São Paulo. Entre os bichos, até a primitiva lesma-do-mar, quando tocada, encolhe-se, acelera o coração e libera uma tinta para confundir os inimigos. Seu sistema nervoso rudimentar também é capaz de sentir medo.
Seres mais complexos carregam no cérebro dois pequenos caroços com o formato de uma noz – daí o nome amígdala, amêndoa em grego, nada a ver com as outras bolinhas que você tem no pescoço. Essas estruturas têm uma função: identificar o perigo e avisar o corpo de que é hora de ter medo. As amígdalas são tão importantes que aparecem em todos os mamíferos, as aves e os répteis. Mas, quanto mais potente é o cérebro do animal, maior a capacidade de prever o futuro e, portanto, de temer por ele. “Outros animais acionam o medo só quando o predador aparece”, diz Ades. “O homem, com seu poder antecipatório, é capaz de temer a morte mesmo quando não há ninguém tentando matá-lo.” Isso faz de nós mais medrosos, mas também mais prevenidos – estudamos os astros antes que um asteróide ameace chocar-se com o planeta e construímos muros antes que um inimigo apareça com um machado na mão.
Pois é nas amígdalas que está o problema da imprudente Simone. Damásio descobriu que, nela, essas estruturas são duras feito osso, em vez de esponjosas como no resto de nós. Por um capricho genético, uma grande quantidade de cálcio depositou-se ali, paralisando as atividades e dando origem a todos os problemas da jovem. Esse mal é conhecido como doença de Urbach-Wiethe. Por causa dele, Simone não toma sustos nem fica apreensiva. Aliás, ela não consegue sequer identificar o medo no rosto dos outros ou desenhar expressões de pavor. Felizmente, casos extremos como o de Simone são raríssimos – a seleção natural se encarregou de matar a maioria dos portadores ao longo da evolução antes que eles conseguissem gerar um descendente.
Graças a casos como o dela, cientistas como Damásio estão desvendando o funcionamento das amígdalas. “A cada vez que enfrentamos um perigo, elas entram em atividade”, disse à
Super o neurologista Joseph LeDoux, da Universidade de Nova York, Estados Unidos, o maior especialista mundial em medo e também autor de um livro de sucesso, O Cérebro Emocional. “Aparentemente, elas gravam a memória de alguns aspectos do perigo – um cheiro, uma imagem, um barulho. Depois, na próxima vez que topamos com esses mesmos estímulos, elas disparam, avisando que algo está errado”, diz ele.
Toda vez que entramos em contato com um objeto, ele precisa ser processado no córtex, aquela parte externa do cérebro parecida com uma grande lesma enrolada. Ele se encarrega de dizer para você qual é o tamanho do objeto, a cor, o cheiro, que barulho faz, vasculha as memórias para ver se você já tinha topado com aquilo antes, descobre se o negócio tem nome. Enfim, faz as atividades nobres relacionadas ao raciocínio. Por exemplo, suponha que você seja uma criança inexperiente e o objeto seja uma abelha. Enquanto o inseto se aproxima, o córtex tenta entender que bicho é aquele zunindo. Agora, se a abelha lhe der uma ferroada doída, quem vai entrar em ação são as amígdalas, que gravam o zunido. Depois disso, toda vez que você ouvir um bzzzz, elas darão o alarme e você ficará apavorado antes mesmo que o córtex entenda o que está se passando. Pronto, você ganhou um medo novo. Acontece que as amígdalas não são tão sofisticadas quanto o córtex. Elas não analisam muito, não perdem tempo com raciocínios complexos – e justamente por isso respondem tão rápido aos estímulos. Isso explica por que os medos não são racionais. Nos assustamos no cinema e no parque de diversões mesmo sabendo que nossa saúde não corre risco algum. As amígdalas dão o alarme ainda que o córtex insista em afirmar que está tudo bem.
Além dos medos que aprendemos, as amígdalas já nascem com alguns perigos gravados. Ratos criados em laboratório, que nunca viram um gato, se apavoram ao encontrar um pela primeira vez – e não só por causa do tamanho, já que cachorros não causam tanto terror. Nós, humanos, também trazemos medos do berço, como o de cobra. Eles foram gravados nos nossos genes pela evolução, ao longo dos milênios (os ratos que enfrentavam gatos e os homens que gostavam de cobras simplesmente não sobreviveram para contar a história com o seu DNA).
Só que nossas amigas amígdalas às vezes erram. A Organização Mundial da Saúde calcula que pelo menos 15% dos seres humanos têm o problema oposto ao de Simone: medo demais. Estão incluídos aí desde fóbicos incapazes de entrar em avião ou de enfrentar uma barata , até os pacientes que enfrentam a terrível síndrome do pânico.
Um exemplo de erro de processamento das amígdalas é o estresse pós-traumático, um mal que atinge pessoas que enfrentaram uma situação-limite. Por exemplo, um soldado que lutou uma batalha no deserto e, num certo momento, viu uma bomba despedaçar seus companheiros. O evento é tão terrível que as amígdalas acabam gravando mais informações do que seria necessário. Elas registram não só a explosão, mas também o barulho, a imagem da areia fofa do deserto, o calor do sol. Por causa disso, o sujeito pode ficar desesperado ao ouvir um trovão ou enquanto caminha pela praia. E isso talvez aconteça pelo resto de sua vida.
As amígdalas não vigiam apenas perigos externos. Elas também estão ligadas por nervos à corrente sangüínea e aos órgãos. Dessa forma, podem nos avisar quando algo vai mal com a saúde. A síndrome do pânico é um defeito nesse mecanismo de gerenciamento interno. Nesse caso, o sujeito começa a prestar atenção no ritmo de sua respiração ou nos batimentos do coração e se convence de que há algo estranho. Isso gera ansiedade e, com ela, surgem os sintomas do medo: coração cada vez mais acelerado, respiração cada vez mais descontrolada, suor. Daí a vítima começa a ter certeza de que realmente está passando mal e se convence de que vai morrer. E vai ficando cada vez pior.
“Para ter uma idéia da sensação durante um ataque de pânico, é mais ou menos a mesma do começo da descida de uma montanha russa. Só que dura 20 minutos”, diz a psiquiatra paulista Mariangela Savoya, especialista no assunto. O problema não pára aí. A primeira crise do pânico é tão ruim que acaba gravando ainda mais informações nas amígdalas. Por exemplo, se o sujeito tem um ataque no supermercado, as amígdalas registram que supermercados são lugares perigosos. Daí para frente, ele passa a ter medo de supermercados também. Com o tempo, na medida em que as crises vão se repetindo, o paciente passa a ter medo de tudo.
“Resta a ele procurar um psiquiatra, que vai tratá-lo com antidepressivos”, diz o psiquiatra paulista Tito Paes, autor de Sem Medo de Ter Medo. Esses potentes remédios não agem especificamente contra o pavor; eles mudam toda a composição química do cérebro e um dos efeitos disso é que acabam diminuindo a ansiedade. “Antidepressivos como o Prozac são bons para muitas coisas. Mas não são perfeitos para nada”, afirma Joseph LeDoux. É que, como eles agem globalmente no cérebro, acabam produzindo muitos efeitos colaterais.
Acontece que os cientistas estão procurando medicamentos mais específicos. “Agora que entendemos o funcionamento das amígdalas, estamos desenvolvendo drogas que agem diretamente nelas”, disse à Super o americano Steven Hyman, que dirige o Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, o órgão que define as prioridades para a neurologia do país. Nos primeiros testes em humanos, esses remédios reduziram a ansiedade, mas acabaram atacando o fígado. Hyman afirma que serão necessários alguns ajustes de dosagem, mas que a nova classe de drogas poderá ser comercializada ainda nesta década.
Seria um alívio para vítimas do pânico ou do estresse pós-traumático. “Mas, se conseguirmos eliminar os efeitos colaterais, talvez vejamos gente tomando os medicamentos em situações bem mais corriqueiras”, afirma o alemão Christian Büchel, do Instituto de Neurologia de Londres, Inglaterra, um dos principais pesquisadores dos mecanismos do medo. Ou seja, pode ser que se torne comum tomar uma pílula antes de subir num avião, ao abordar um pretendente amoroso ou durante uma reunião tensa com o chefe. Pessoas que não gostam de lugares fechados, como o próprio Büchel, talvez usem do artifício para enfrentar um túnel ou um elevador.
Estamos, portanto, prestes a vencer o medo. Mas será que isso é bom? “Assusta a possibilidade de uma super-manipulação das emoções”, afirma Damásio. “Pode ser que as pessoas comecem a evitar todo e qualquer sentimento ruim, para escapar de seus inconvenientes.” Junto com os inconvenientes, perderíamos também as vantagens do medo. Tente imaginar, por exemplo, andar numa rua onde todos os motoristas dirigem sem medo. Dá medo, não dá?
Para saber mais
Na livraria: O Erro de Descartes
António Damásio, Companhia das Letras, São Paulo, 1996
O Cérebro Emocional
Joseph LeDoux, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 1998
Sem Medo de Ter Medo
Tito Paes de Barros Neto, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2000
drusso@abril.com.br
Controle-se!
O medo nos mantém vivos. Mas, quando é demais, atrapalha. Saiba o que fazer para que ele jogue a seu favor
Vai passar. Nunca se esqueça disso. O medo é uma preparação para o desconhecido e evapora quando a situação se torna conhecida. Se você for falar em público, comece o discurso e tente relaxar – a tensão acaba indo embora. A dica vale até para pacientes da síndrome do pânico: a crise é horrível, mas não dura mais que 20 minutos. Os neurônios que a provocam não conseguem manter-se ativados por mais tempo que isso.
Quando o medo o incomoda, enfrente-o. Não adianta fugir todas as vezes que ele aparece. Uma boa dica é ir encarando-o aos poucos. Por exemplo, se seu problema é com alturas, experimente começar subindo alguns degraus e vá aumentando na medida em que você for ficando mais seguro. Não comece por um prédio de 20 andares porque o fracasso só o fará desanimar.
Se possível, tente se concentrar em alguma outra coisa e desvie a atenção do seu cérebro da área primitiva que controla o medo para a região complexa que rege o raciocínio. Por exemplo, comece a contar os livros na estante ou a pensar em algum problema matemático.
Se o pavor realmente está atrapalhando sua vida e não melhora de jeito nenhum, então é um transtorno de ansiedade. Você precisa procurar um psiquiatra e talvez sejam necessários medicamentos.
Arrepio na espinha
O medo não está só na cabeça. O organismo inteiro se modifica ante uma ameaça
Emoção
Quando um estímulo chega ao cérebro, vai direto à amígdala. Se ela julgar que se trata de uma ameaça, manda mensagens ao corpo todo, alertando-nos para ficarmos atentos
Panorama
As pupilas se dilatam, o que tira a capacidade de reparar nos detalhes, mas dá uma visão mais geral, ideal para percebermos os riscos e as rotas de fuga
Energia I
O corpo começa a quebrar gorduras, que são eficientes depósitos de energia. Pode ser útil para ajudar numa fuga ou num enfrentamento
Diarréia
O sangue deixa o intestino para se concentrar no cérebro e no coração, onde é mais necessário. O desarranjo que se segue a um susto pode estar ligado a isso
Razão
Só depois que as amígdalas fizeram seu julgamento, o córtex começa a entender que estímulo é aquele. Nesse meio tempo, o corpo já está se preparando para lutar ou fugir
Força
O coração acelera para que o sangue se espalhe rápido, levando nutrientes. No pulmão, os bronquíolos se dilatam para nos dar mais oxigênio
Energia II
O fígado quebra açúcares para produzir energia. Os rins produzem adrenalina, que contrai os vasos sangüíneos, fazendo com que o sangue circule mais rápido.
Reação
Com mais energia e oxigênio, os músculos ficam prontos para reagir, usando o máximo de sua capacidade. Ficamos mais fortes
Nada é de graça
Fobias são medos exagerados que incomodam muito quem sofre com elas. Mas todas nasceram de medos sem os quais a espécie humana não sobreviveria
Fobia de lugares abertos
A agorafobia, que, em geral, está associada à síndrome do pânico, pode ser explicada pela necessidade dos antigos humanos de evitar lugares onde ficassem expostos a predadores como os grandes felinos, que enxergam melhor do que nós e correm bem mais rápido.
Fobia de fogo
Bebês temem o fogo, que já queimou muitos de nossos ancestrais. Mas enfiam sem medo o dedo na tomada porque a eletricidade é recente demais para estar gravada geneticamente na nossa memória evolutiva.
Fobia de altura
Gostamos de lugares altos porque eles nos deixam detectar perigos de longe. Mas é claro que é útil evitar aproximar-se da beirada de penhascos e precipícios. Está aí a origem da acrofobia.
Fobia de baratas
Está ligada à aversão à sujeira, que certamente já livrou muitos humanos de doenças.
Fobia de lugares fechados
Hoje esse medo é quase inútil. No passado, evitava que os homens ficassem acuados, sem ter como fugir dos inimigos.