O cenário é Jebel Irhoud, um conjunto de cavernas a 100 quilômetros de Marrakesh, no Marrocos. Mas ainda não existe Marrakesh nem Marrocos. Estamos num fim de tarde de 300 mil anos atrás – 100 mil anos antes do surgimento dos primeiros seres humanos modernos.
Mas eis que enxergamos ao longe um grupo de… humanos. Sujos, cabelos desgrenhados, mas claramente humanos. Com o devido banho de loja, todos passariam despercebidos se cruzassem a Avenida Paulista na hora do almoço. São quatro ao todo. Três adultos e um adolescente, voltando de uma caçada. E eis que surge um quinto elemento: uma criança sai correndo de uma das cavernas rumo ao campo aberto, feliz em vê-los. Talvez seja uma família. Eles carregam para dentro uma gazela morta. A caça foi boa naquele dia – fruto das boas lanças que portavam, com pontas feitas de pedras particularmente afiadas, obtidas num veio a uns 30 quilômetros dali.
Eles entram na caverna para passar a noite. Diversos outros humanos, parte do mesmo grupo, fazem o mesmo. Então todos acendem uma fogueira e se reúnem ao redor, partilhando uma suntuosa refeição de carne de gazela.
Só que nem todos os dias são felizes assim. A vida é dura na Idade da Pedra. A criança morreria antes de completar 8 anos. O adolescente não veria a idade adulta. Os três adultos não chegariam aos 40. Cada um morre a seu tempo e tem o cadáver deixado de lado num canto do conjunto de cavernas, misturado aos ossos das gazelas e zebras que foram suas vítimas no passado. A passagem do tempo vai recobrindo os corpos com camada após camada de poeira, por milhares e milhares de anos.
Mas não para sempre. Das profundezas do passado, esses nossos ancestrais ainda retornariam para nos contar aquela que talvez seja a mais bela e intrigante de todas as histórias – a nossa história. Uma saga que, ao que tudo indica, começou há bem mais tempo do que imaginávamos.
Em 1960, um grupo de mineração iniciava operações em Jebel Irhoud. Uma explosão revelou uma caverna cheia de sedimentos da época do Pleistoceno (período que compreende entre 1,8 milhão e 126 mil anos atrás). No ano seguinte, um crânio inteiro foi desenterrado. Com o passar do tempo, encontraram mais fósseis. Só não havia uma forma segura de determinar a idade deles. Pior: o avanço da mineração no local sucateou boa parte do sítio arqueológico.
Após décadas de ensaios e num esforço de teimosia, em 2004, começaram novas escavações, sob o comando dos arqueólogos Jean-Jacques Hublin, da Alemanha, e Abdelouahed Ben-Ncer, do Marrocos. O trabalho se concentrou sobre a única seção mantida intacta do sítio original, e foi isso que permitiu, ao longo dos anos seguintes, aumentar o número de fósseis humanos descobertos de 6 para 22 – incluindo aí a família que abre este texto.
E o mais surpreendente: concluíram que os fósseis tinham 300 mil anos. Isso mostra que o Homo sapiens, na realidade, é pelo menos 100 mil anos mais antigo do que a ciência imaginava – os fósseis mais velhos de sapiens antes desses têm só 200 mil anos.
Esse sapiens marroquino, porém, não é tão igual a você. O rosto, sem dúvida, indica que ele é um membro da nossa espécie. Mas os ossos da cabeça, nem tanto. O neurocrânio deles não é redondinho como o nosso. É mais alongado, como uma bola de futebol americano. Lembra a cabeça dos Homo heidelbergensis, um grupo de antepassados nossos que surgiu há 800 mil anos.
Isso torna a descoberta ainda mais especial, diga-se. Ela revela que a seleção natural primeiro agiu sobre a face dos humanos, para só depois dar os toques finais ao cérebro – uma pista importante de como foram dados os últimos passos evolutivos rumo ao Homo sapiens.
Mais do que uma pista, a confirmação de uma expectativa. “Uma hora a gente iria achar uma transição entre o heidelbergensis e o sapiens. Tinha um buraco aí”, afirma Walter Neves, antropólogo evolutivo da USP. “Esse material agora preenche o buraco.”
Mas, espera aí, e a promessa de que esses nossos ancestrais iam voltar para nos contar uma grande novidade? Se a descoberta já era mais ou menos esperada, qual é a tal surpresa? Bom, a questão não é tanto quem foi descoberto ou quando viveu. O mais surpreendente é o lugar onde esses ancestrais do homem moderno viveram. Sua presença no noroeste africano desmonta uma tese que vinha ganhando força nas últimas décadas: a noção de que houve um “berço da humanidade”, por assim dizer, um único local da África de onde emergiu, lindo e prontinho, o glorioso Homo sapiens.
Esse evento portentoso, segundo a velha teoria, teria ocorrido ali pelos cantos da Etiópia mesmo, perto do chifre da África, uns 200 mil anos atrás. Agora, achamos ancestrais sapiens (ou quase sapiens) 100 mil anos mais velhos, só que do outro lado do continente africano. Esses ancestrais certamente participaram da nossa evolução, e estavam bem longe do tal “berço da humanidade”. Hublin argumenta que sua descoberta aponta para uma origem pan-africana e miscigenada do homem moderno. Não houve um berço único, ele defende. O que teria existido é um grupo de várias populações com características de sapiens se misturando e se combinando, até chegar à forma moderna, que se espalhou pelo mundo e substituiu todos os outros hominídeos. Em resumo, sai de campo a pureza do Jardim do Éden e entra em cena uma intensa suruba evolutiva.
Essa é, em essência, a nova história da evolução humana.
Em três tempos
Iniciada em meados do século 19, a busca por nossas origens passou, grosso modo, por três etapas.
A primeira (e mais ingênua) delas consistia em buscar fósseis que retraçassem o caminho entre nós e nosso ancestral comum com os chimpanzés. Era aquela conversa de “elo perdido”, retratada iconicamente pela figura clássica que mostra uma sequência de hominídeos com morfologias gradualmente diferentes até chegar ao homem – algo como a escadinha da evolução humana.
Uma segunda etapa, já mais madura, descartou a história da escadinha. Conforme o registro fóssil foi aumentando, os cientistas começaram a perceber que boa parte dos hominídeos antigos, e suas datações correspondentes, não se encaixava naquela narrativa linear, tão simples, que levava do homem-macaco ao ser humano em um punhado de etapas claras. Havia fósseis aparentemente primitivos demais vivendo em tempos recentes, outros que pareciam seguir um caminho evolutivo que deu em lugar algum, outros que pareciam ser de uma dada espécie já catalogada, mas não exatamente (caso em que se encaixam os sapiens de Marrocos). A história foi ficando mais confusa.
Agora estamos chegando a uma terceira etapa, que nos permite enxergar detalhes miúdos. Munidos de novos recursos tecnológicos, que nem completaram ainda uma década, como a capacidade de estudar genomas de certos fósseis e compará-los ao dos humanos modernos.
Essa é uma técnica recente. Sua estreia veio em 2010, quando um grupo de cientistas liderado pelo sueco Svante Pääbo apresentou o primeiro sequenciamento do genoma de neandertal. Todos os seres vivos têm ancestrais em comum. Você e uma sardinha compartilham um mesmo tatatataravô, que viveu há 430 milhões de anos. Sabemos disso porque, quando você estuda os genes de duas espécies diferentes, consegue traçar em que época viveu o bicho que deu origem às duas.
Mais adiante vamos ver como funciona esse processo. O que importa aqui, por ora, é outra coisa: ao examinar o genoma neandertal, Pääbo concluiu que o nosso ancestral em comum com eles viveu há 500 mil anos. Essa é uma data que, veja só, coincide com a idade dos registros fósseis do Homo heidelbergensis, o hominídeo que emprestou seu crânio alongado aos sapiens do Marrocos. Conclusão: os heidelbergensis que permaneceram no solo africano acabaram dando origem a nós, sapiens. Os que partiram para a Europa geraram os neandertais. Tudo bem redondo. Mas o estudo também revelaria uma suruba evolutiva. Literalmente.
Depois dessa diferenciação, há meio milhão de anos, as duas espécies voltariam a se misturar. Foi quando o sapiens empreendeu sua própria saída da África, há cerca de 70 mil anos. Esses migrantes encontraram os neandertais e fizeram filhos com eles. Muitos filhos. Tanto que absolutamente toda a população viva hoje que não tenha origem 100% africana apresenta algum componente neandertal no DNA. Na média, algo em torno de 1% e 3% do genoma de quem tem ascendência asiática, europeia, aborígene ou indígena veio dos neandertais. Parece pouco, mas se juntarmos o que tem de neandertal por aí hoje nos humanos modernos daria para formar 20% do genoma completo deles.
Pääbo ficou chocado ao descobrir isso. Até então, ele era um dos defensores da ideia de que não houve miscigenação entre os dois grupos. “Me recostei na cadeira do escritório e fiquei com o olhar perdido na minha mesa desarrumada onde estudos e anotações dos últimos anos foram se acumulando, camada após camada”, reconta o pesquisador sueco, em seu livro Neanderthal Man. “É fantástico: os neandertais não se extinguiram totalmente. Seu DNA está em pessoas vivas.”
Denisovanos
O estudo de DNA de fósseis foi ainda mais longe e permitiu que a equipe de Pääbo pela primeira vez identificasse um novo grupo de hominídeos somente por seus genes. Eles conseguiram sequenciar trechos do genoma desses caras a partir de um fóssil de dedo de 40 mil anos encontrado na caverna Denisova, localizada no sudoeste da Sibéria, região russa próxima à fronteira com a China e a Mongólia. Sua herança genética indicava que essa pessoa não era nem neandertal, nem sapiens, só teve um ancestral comum com esses dois grupos – ao que tudo indica, o heidelbergensis.
Dados os poucos caquinhos de fósseis encontrados por lá, nada sabemos sobre sua aparência (a imagem acima é uma suposição baseada nos neandertais). Mas podemos dizer que esses “denisovanos” estavam mais próximos, em termos de parentesco, dos neandertais do que de nós e que, claro, eles também se misturaram aos humanos modernos e contribuem hoje com um pequeno percentual genético de populações da Ásia e da Oceania. Ou seja: talvez nunca saibamos qual era a aparência dos denisovanos, mas já descobrimos que parte deles vive em nós hoje.
A essa altura, você pode imaginar que os recursos de biologia molecular e a capacidade de ler genomas poderiam matar completamente a charada da evolução humana, do começo até o fim. Bastaria para isso sequenciar os genomas de todos os fósseis que temos por aí e ordenar por parentesco. Fim da história.
Seria de fato maravilhoso se fosse possível. Infelizmente, a molécula de DNA não se anima muito com a ideia. Ela é extremamente frágil. Degrada-se com rapidez. Para sequenciar genes neandertais e denisovanos, os cientistas contaram com fósseis particularmente bem preservados – às vezes congelados, como o caso do dedinho encontrado na Sibéria – e recentes, remontando a poucas dezenas de milhares de anos atrás. Não há a menor esperança de, por exemplo, obter DNA de Lucy, a australopiteca que remonta à transição dos símios para o gênero Homo, e que viveu há 3,2 milhões de anos. Então, dificilmente poderemos um dia desenhar essa árvore genealógica com perfeição absoluta. Mas já temos um ótimo rascunho. Veja aqui:
“Eu nasci 8 milhões de anos atrás”
Além de frágil, o DNA é mutante: seu código se altera com o passar do tempo. Sempre, ainda que devagar. Para que pouco mais de 1% do DNA de alguma espécie de ser vivo se transforme, é preciso algo entre 6 milhões e 8 milhões de anos. Chimpanzés e humanos compartilham quase 99% do DNA. Isso signica que o animal que deu origem aos humanos e aos chimpanzés viveu entre 6 milhões e 8 milhões de anos atrás.
Nunca encontramos um fóssil desse ancestral comum. Mas já chegamos perto. Mais precisamente, na raiz dos chamados ardipitecos. Há vários membros desse ramo aparentado da família humana, que se estendem no registro fóssil entre 7 milhões e 4,4 milhões de anos atrás. Eles foram os primeiros da família a andar sobre duas patas, por exemplo.
Avançando mais no tempo, encontramos outro parente nosso, o dos australopitecos. Distribuídos na linha do tempo entre 4 milhões e 1,9 milhão de anos atrás (o australopithecus sediba, da imagem abaixo, foi o último a acabar extinto) , esses hominídeos esguios que não passavam de 1,40 m foram os primeiros a de fato levar a sério a ideia de andar em dois pés regularmente, embora ainda conservassem a capacidade de subir em árvores – em 2016, um estudo mostrou que Lucy morreu provavelmente por cair de uma árvore, de uma altura de 12 metros.
A evolução transformou alguns australopitecos em animais fortes, os parântropos. Eram hominídeos que, se existissem hoje, seriam vistos como uma espécie de cruzamento de humano com gorila: além de praticar o bipedalismo, tinham mandíbulas e dentes grandes, capazes de deglutir uma grande variedade de alimentos – principalmente vegetais mais duros, coisa na qual humanos jamais se esmeraram.
Apesar de provavelmente serem descendentes dos australopitecos, os parântropos não são nossos antepassados. A linhagem que daria origem a nós veio de outro neto de Lucy: os animais do gênero Homo. O primeiro exemplo incontroverso conhecido desse ramo é o Homo habilis, que surgiu uns 2,4 milhões de anos atrás. Baixinho (entre 1 m e 1,35 m), atarracado e com cérebro só um pouco maior que o dos australopitecos (equivalente a 35% do nosso), ele era já um exímio fabricante de ferramentas de pedra lascada. Mas não muito mais que isso.
A existência do habilis limitou-se à África. Mas ele certamente conviveu com um primo ainda mais sofisticado. Um primo que também descende dos australopitecos, e que provavelmente teve antepassados parecidos com o habilis – o Homo erectus. Os primeiros exemplares conhecidos remontam a 1,9 milhão de anos e denotam um incrível sucesso evolutivo, pois há evidências de que essa espécie tenha subexistido até cerca de 30 mil anos atrás. São quase 2 milhões de anos de existência – contra meros 300 mil que a nossa espécie soma até agora (já levando em conta os fósseis do Marrocos). Sim, isso coloca o aparente sucesso do sapiens em uma perspectiva bem humilde.
Com porte já similar ao do homem moderno (chegavam a 1,85 m) e cérebro com volume equivalente a 70% do nosso, o erectus nasceu como o grande intelectual e conquistador de seu tempo. Foi o primeiro membro do gênero Homo a deixar a África. Foi o primeiro humano a colocar os pés na Europa e na Ásia. Há um milhão de anos, bem antes de o Homo sapiens sonhar em nascer, portanto, alcançou a China e até as ilhas da Indonésia, pertinho da Austrália. Ilhas que, graças ao erectus, testemunhariam o episódio mais fascinante da evolução humana.
Os hobbits da vida real
Nunca se viu tão claramente a pressão da seleção natural sobre humanos quanto na ilha de Flores, na Indonésia. Uma descoberta feita lá em 2004 foi tão chocante que levou tempo até que fosse de fato aceita pela comunidade científica.
Na caverna Liang Bua, um grupo de cientistas encontrou um esqueleto que parecia pertencer a um erectus adulto – só que em miniatura, com 1,3 metro e crânio diminuto. Logo, só podia ser outra espécie, que foi batizada como Homo floresiensis. Mas o que pegou mesmo foi o apelido dela: hobbit.
Houve quem questionasse a legitimidade da descoberta, alegando que o fóssil podia pertencer a um humano moderno, só que doente, com problemas de desenvolvimento. Mas conforme mais fósseis de humanos em miniatura foram descobertos, e com idades que chegavam a 700 mil anos, não houve mais brecha para dúvidas. O floresiensis era mesmo uma nova espécie.
E hoje é consenso: eles são descendentes do erectus que evoluíram para viver isolados em ilhas. Acontece com outros animais também. A falta de alimento e de território favorece indivíduos mais mirrados – esses passam a ser os que deixam mais descendentes. Depois de alguma gerações, então, o que temos é uma população exclusivamente formada por miniaturas dos habitante originais. É o que os cientistas chamam de “Regra de Ilha”. E provavelmente foi o que aconteceu com os animais humanos nesse caso.
De fato. Um estudo recém-publicado por José Alexandre Felizola Diniz-Filho, da Universidade Federal de Goiás, sugere que o padrão de encolhimento do corpo do floresiensis, comparado ao erectus, é compatível com a “Regra de Ilha”. Curiosamente, houve pressão evolutiva para a redução não só do corpo, mas especialmente do cérebro – provavelmente porque nossa massa cinzenta é uma consumidora voraz de calorias.
Os hobbits da vida real tinham volume cerebral equivalente ao de um chimpanzé ou de um australopiteco. Mesmo assim ele manteve duas heranças do erectus: ferramentas sofisticadas e o domínio do fogo.
“Tem fogo?”
O erectus, vale lembrar, foi o primeiro hominídeo capaz de responder “sim” à pergunta aqui em cima. O mais provável é que ele só tenha conseguido fazer suas grandes migrações e sobreviver por quase 2 milhões de anos por controlar o fogo. E não só porque o fogo afugenta predadores. Mas por outra característica, até mais importante: porque o fogo cozinha alimentos. A habilidade de fazer churrasco permitiu ao erectus consumir grandes quantidades de calorias em pouco tempo – coisa que seus ancestrais não faziam (eles passavam boa parte do dia mastigando, como os chimpanzés e gorilas ainda passam). Bom, cérebros grandes consomem mais calorias que cérebros pequenos. Com mais calorias agora à mão, os erectus abriram a porteira evolutiva para o surgimento de cérebros gigantes.
E por isso mesmo eles deixaram um ancestral especialmente cabeçudo: ninguém menos que o Homo heidelbergensis, o de 800 mil anos atrás e último estágio antes de nós. O heidelbergensis surgiu a partir de erectus que tinham ficado na África – os da Eurásia acabam extintos sem deixar descendentes evolutivos. Esperta, essa nova espécie também viajaria bastante. E faria o que seus pais não fizeram. Na Europa, como já vimos aqui, geraram um descendente muito bem-sucedido: o neandertal. Na Ásia, originaram os denisovanos. E os heidelbergensis que ficaram na África? Exato: deram à luz esta maravilha que você vê no espelho todas as manhãs: o sapiens.
Mas, ei: a história não acaba aqui, não. É que não param de surgir surpresas na saga da humanidade. É o caso do misterioso Homo naledi.
Naledi, o sobrevivente
Em 2013, o antropólogo sul-africano Lee Berger acreditou ter encontrado num sistema de cavernas a 50 km de Joanesburgo fósseis de uma espécie intermediária entre os australopitecos e os primeiros representantes do gênero Homo. O volume cerebral era equivalente ao dos australopitecos, mas a forma do crânio assim como o porte do hominídeo eram mais próximos dos Homo habilis. Mãos, pernas e pés eram surpreendentemente parecidos com homens modernos. O achado foi apresentado em 2015 e claramente parecia importante.
Uma estimativa da época em que ele viveu, baseada somente na morfologia – ou seja, nas formas do fóssil –, sugeria uma idade de pelo menos 2 milhões de anos para o Homo naledi. Mas o fóssil inicialmente não foi datado, o que causou controvérsia entre os paleoantropólogos. Com boas razões: quando a datação foi feita por métodos confiáveis, em 2017, descobriu-se que ele era bem mais recente, tendo vivido entre 236 mil e 335 mil anos atrás. É bem possível, então, que o naledi tenha convivido com o sapiens na África. Seu “encaixe” na árvore genealógica humana, de qualquer forma, ainda não está claro, e talvez ela nem mereça ser chamada de nova espécie. Em um novo estudo, Walter Neves sugere que o naledi deveria ser classificado como uma variedade de Homo habilis que sobreviveu até tempos mais recentes.
O fato de um parente tão primitivo ter sido contemporâneo do sapiens também não surpreende. “Esse negócio de ter só uma espécie de hominídeo no planeta – nós, infelizmente – é de 30 mil anos para cá”, brinca o antropólogo Walter Neves. “É uma exceção absoluta na história evolutiva dos humanos. Há 50 mil anos – só 50 mil, não é nada – nós provavelmente tínhamos no planeta: sapiens, neandertal, denisovano, erectus, floresiensis. E talvez alguns resquícios do heidelbergensis. Então essa coisa de ter só um membro do gênero Homo no planeta é uma exceção.”
O que aconteceu então para que toda essa diversidade humana, cultivada ao longo de milhões de anos, desaparecesse do mapa? Bem, a cultura sapiens aconteceu. Quando o homem moderno saiu da África, ele contava com uma qualidade diferente de todos os outros humanos. Ele era capaz de pensamento abstrato sofisticado – e talvez linguagem idem. Ainda há muita controvérsia sobre quanto pensamento simbólico neandertais, por exemplo, tinham, mas nem eles, nem qualquer outro hominídeo produziram obras-primas da abstração, como pinturas rupestres. Mais: o sapiens bateu com folga o recorde de distâncias percorridas por seus primos erectus, atingindo as Américas 15 mil anos atrás.
Gradualmente, os demais hominídeos foram desaparecendo, substituídos por populações humanas modernas, que desenvolveram capacidades sociais cada vez mais afiadas e acabaram por dominar o planeta com suas pinturas, lendas, mitos, religiões e tecnologias – a mais impactante delas, a agricultura, desenvolvida há 13 mil anos. O resto é história.
De início, fomos levados a pensar que essa era uma saga de conquista sanguinária, com o sapiens exterminando os outros hominídeos. Não que isso não tenha acontecido, mas os genes contam uma história mais complexa. Eles indicam que também houve convívio e miscigenação entre o recém-chegado sapiens e os hominídeos que o precederam. E essa mesma mistura marcou a reta final da nossa linhagem, com neandertais e denisovanos contribuindo para o pool genético da população viva hoje.
A “escadinha” da evolução, enfim, dá lugar a um cenário mais bagunçado, e mais interessante. “Descobrimos nos últimos dez anos essa coisa de que a evolução humana não é uma árvore, mas uma sucessão de moitas”, diz Neves.
A despeito desses avanços recentes, ainda não temos o quadro completo, e talvez jamais o tenhamos. Mas, pelo que pudemos aprender, já fica claro que a capacidade mais especial do Homo sapiens talvez não seja o lugar que ele ocupa na árvore genealógica humana, e sim sua curiosidade – tão insaciável que permite a esse animal cabeçudo vislumbrar suas próprias origens.