Admita: você pensou que ia abrir o post e cair direto num vídeo da dita cuja sendo tocada por algum savant pianista.
Pois é, não. Já dá para adiantar que essa é, na essência, uma pergunta sem resposta. Não existe uma música mais difícil do mundo porque música é arte, e arte é algo subjetivo – independente da proficiência técnica envolvida na execução. Feita essa nota sóbria, vamos para a parte divertida: há, sim, algumas maneiras objetivas de classificar música de acordo com a dificuldade – principalmente a música ocidental erudita.
Em 2010, a editora de partituras G. Henle Verlag encomendou a um músico (muito bom) chamado Rolf Koenen uma escala de avaliação de peças clássicas que vai de um a… nove. Parece muito com a escala Richter, de medição de terremotos. Se algo passasse de nove, você perderia os dedos tentando. No site oficial da editora, há exemplos de peças em cada um dos graus.
Um dos compositores que mais faz o contador de Henle estourar é o húngaro Franz Liszt. Vale ouvir sua Sonata para piano em si menor, S.178. A peça bate um nove (bem) sólido na escala – e é um dos momentos mais importantes da música do período romântico.
Legal. Mas calma, vai ficar ainda mais maluco. Um critério importante na hora de cravar a dificuldade de uma música é o quanto ela é difícil de tocar (e ouvir) para quem viveu na mesma época em que ela foi composta. Hoje há mais pessoas capazes de tocar Liszt do que havia no passado – não porque os músicos sejam fisicamente mais capazes do que eram no século 19, mas porque os desafios técnicos que eram inéditos na época do húngaro já são encarados com mais naturalidade depois de cem anos de modernismo, jazz e coisas como música eletroacústica.
O músico e youtuber Adam Neely dá um bom exemplo: Eruption, o solo mais famoso de Eddie Van Halen. Quando foi lançado, em 1978, tocar guitarra daquela maneira não era só tecnicamente difícil: era algo que quase ninguém além do próprio Van Halen poderia ter idealizado. Mais do que um desafio para as mãos, era um desafio estético. Hoje, passados 40 anos, a execução em si não ficou mais fácil, mas dezenas de músicos profissionais e amadores, depois de algum treino, conseguem tocar Eruption sem problemas, e as novidades que o solo trouxe se tornaram lugar comum no hard rock.
O que levanta outra pergunta: o que, na música contemporânea, está em um grau de dificuldade inédito mesmo para os músicos mais capazes?
Bem, uma resposta possível está nas peças que só uma máquina pode executar. Por falta de dedos, mesmo. Em 1920, estavam no auge as pianolas: pianos automáticos capazes de ler rolos de partitura sem auxílio humano. Livres de limitações físicas (como tamanho das mãos) ou cognitivas (como a capacidade de lidar com cinco ou seis padrões rítmicos sobrepostos), compositores visionários como Conlon Nancarrow puderam tirar do papel peças como a que você ouve aqui embaixo. Na ausência de um músico, o filme mostra o rolo de partitura. É uma experiência… curiosa. Uma espécie de Guitar Hero steampunk.
Com a informática, veio o Black MIDI. O “black” do nome é uma referência à mancha de tinta que fica na página depois que a partitura é impressa (como na imagem que abre este post). Black MIDI é quase um exercício matemático: são milhões ou até bilhões de notas em cada peça. A ideia vai além de tornar a execução impossível para um ser humano. Precisa ser impossível até para um computador mais fraquinho.
No campo das coisas que o ser humano é capaz de fazer, um exemplo divertido é Failing, de Tom Johnson. Na peça, o músico precisa ler um longo texto, em tom de conversa, enquanto toca uma peça cada vez mais difícil no contrabaixo. O texto, além de conter comentários engraçadinhos, comenta às sensações do músico conforme ele tenta lidar com a partitura e as palavras ao mesmo tempo, alterando o próprio tom de voz e também a intensidade e velocidade das notas.
Outra peça padrão “sem noção” de dificuldade é o sétimo quarteto de cordas do compositor Ben Johnston. Nela, todos os músicos precisam tocar só um pouco desafinados.
Entenda assim: o terceiro “dó” do piano, por exemplo, tem 261 Hz. A próxima nota, dó sustenido, tem 277 Hz. Em teoria, valores intermediários, como 263 Hz ou 273 Hz, não existem na música ocidental. É muito difícil, para um músico tradicional, acertar a afinação de notas que ele está acostumado a identificar como problemas de afinação, e não como sons que são, em si, capazes de gerar música. O vídeo abaixo conta a história de um grupo de músicos que dedicou 14 (!) anos a praticar as peças de Johnston. Se há algo que está no limite do possível, é isso.