O lugar é asséptico, limpíssimo. Paredes brancas, espelhos, aparelhos de esterilização, luvas descartáveis, gavetas com seringas lacradas e cadeiras de dentista. Num balcão ficam expostos os tubos de tinta colorida. O ambiente seria tão silencioso quanto um hospital não fosse o som psicodélico que agita os corajosos que circulam pela casa em busca de uma das poucas coisas definitivas na vida: uma tatuagem. No estúdio Led’s Tattoo, do paulista Sérgio Maciel, cerca de 50 pessoas são tatuadas todos os dias. Com o verão, que naturalmente coloca barrigas, costas e pernas de fora, esse número cresce. “Tatuagem hoje é status, como se fosse uma jóia. Significa que você é moderno. É sinônimo de personalidade”, diz Maciel.
A tatuagem existe desde que o mundo é mundo. O Homem de Gelo, um corpo congelado encontrado na Itália em 1991, que se supõe ter vivido há cerca de 7300 anos, tinha vários desenhos sobre a pele. A múmia da princesa Amunet, de Tebas, exibe desenhos feitos de pontos e linhas que certamente chamaram a atenção dos egípcios há mais de 4000 anos. Não se sabe o que aquela tatuagem significava para os nossos ancestrais. Mas é muito provável que ela não tenha sido desprovida de sentido. “O corpo foi um dos primeiros instrumentos manipulados pelo homem para expressar um significado”, afirma a antropóloga Lux Vidal, especialista em pinturas corporais da Universidade de São Paulo. “Tatuagens, pinturas, mutilações e cortes de cabelo são modos de transformar o corpo para que ele comunique códigos, relações sociais e valores.”
As motivações que levam uma pessoa a se tatuar são quase infinitas. Índios de vários países costumam se pintar para, entre outras coisas, assinalar classificações de status entre os membros da tribo. Como em seu local de origem, dispensam as roupas com que o homem branco sinaliza seu poder aquisitivo e valores estéticos, é com tinta e formas impressas no corpo que eles se diferenciam. Os peles-vermelhas, da América do Norte, cobriam o corpo com pinturas em situações de luto ou para ir à guerra. Já na região que hoje corresponde aos países árabes, as tatuagens eram feitas para “proteger” o corpo de doenças e trazer prosperidade. Acreditava-se que a impressão definitiva de desenhos na pele tinha propriedades mágicas. Quando a região foi dominada pelo Islamismo do profeta Maomé, tatuagens e qualquer alteração no corpo passaram a ser vistas como pecado.
O primeiro registro literário da tatuagem data de 1769. Trata-se do relato do navegador inglês James Cook sobre o que viu ao chegar ao Taiti, na Polinésia: os nativos usavam espinhas de peixe finíssimas, ou ossos de passarinho, para perfurar a pele e injetar um pigmento feito à base de carvão e ferrugem. Data daí também a palavra tattoo, versão para o inglês do taitiano tatu (pronuncia-se tatau), que quer dizer, adivinhe, desenho na pele.
Ao longo da história as tatuagens também têm sido frequentemente associadas à punição e a comportamentos marginais. Os bretões, povo bárbaro que habitava a região da atual Grã-Bretanha, pintavam o rosto com várias cores para intimidar invasores. No Império Romano, os escravos eram tatuados. Na França do século XVIII, criminosos ganhavam uma pintura na pele – às vezes uma marca com ferro quente – registrando o crime que tinham cometido. Prostitutas, piratas e marinheiros também se tatuam há séculos, como sinal de valentia e para demarcar seus grupos sociais (na primeira década deste século, todo navio que partia da Europa levava a bordo um tatuador). Sereias, caravelas, mulheres, âncoras e sinais patrióticos sempre foram os desenhos mais escolhidos entre os marinheiros. Era comum também as prostitutas levarem uma marca de seus cafetões, como um atestado de propriedade.
Em presídios do mundo inteiro, os próprios detentos se tatuam para diferenciar a facção à qual pertencem. O desenho do punhal cravado num coração significa “assassino”. É comum também os presos marcarem o número do crime que cometeram (o número 288, por exemplo, é o artigo referente ao crime de formação de quadrilha no Código Penal Brasileiro). Antigamente, era a própria polícia que os tatuava. Na Inglaterra, cravavam-se as iniciais “BC” – bad character, mau caráter em inglês – na pele dos condenados. “Ao longo do tempo, a tatuagem acabou virando a marca de pessoas marginais, diferentes do resto da sociedade”, diz Mirela Berger, mestre em Antropologia pela Universidade de São Paulo.
Hoje isso mudou. Alguns grupos marginais ainda utilizam a tatuagem como código, como os mafiosos japoneses da Yakuza, que tatuam grande parte do corpo como prova de coragem e de fidelidade à gangue. Além da tatuagem, é muito comum membros do grupo terem falanges decepadas como punição por traição. Mas a tatuagem, principalmente nas últimas décadas, deixou de significar desencaixe social. Para muita gente – e gente formadora de opinião, com alto poder aquisitivo e boa bagagem cultural -, tatuagem pode ser apenas uma forma de arte e diversão. “Perdi a conta de quantas vezes me perguntaram se eu vendo drogas. Infelizmente a tatuagem ainda é vista como sinônimo de irresponsabilidade”, diz a analista de sistemas Katia Marcolino, 32 anos, toda tatuada.
De todo modo, certamente uma das razões que conduzem à tatuagem hoje é o desejo de aparecer em público com um visual inusitado. O motorista Luis Cláudio Marangoni, 32 anos, tatuado da cabeça raspada aos dedos dos pés (“Inclusive lá”, afirma), com motivos que vão de mulheres nuas a morcegos, passando por escrita japonesa, adora pôr uma sunga e sair por aí.
“Por meio da tatuagem, as pessoas procuram ser valorizadas e consideradas bonitas pelo grupo a que pertencem. Trata-se de uma necessidade de parecer igual e, ao mesmo tempo, diferente em relação aos outros”, diz Sandro Caramaschi, professor do Departamento de Psicologia da USP. “A necessidade de se destacar dentro de uma sociedade massificada como a nossa é cada vez maior”, diz a antropóloga Mirela. “Todos queremos chamar a atenção. E cada um chama a atenção da maneira que mais lhe parece positiva, ainda que isso possa escandalizar quem optou por outros padrões de conduta e de afirmação.”
Fazer uma marca definitiva no corpo exige coragem para desafiar normas e encarar preconceitos. Em profissões tradicionais, como advocacia e medicina, braços cheios de desenhos não são vistos com bons olhos. Nem por chefes, nem por pares e nem pelos clientes da maioria das empresas.
“Para cargos mais altos, não seleciono pessoas que têm tatuagem. Não soa bem. As empresas sempre dão preferência aos perfis tradicionais”, diz Silvana Case, vice-presidente da Catho, consultoria especializada em selecionar executivos. Em muitas empresas, funcionários tatuados precisam usar roupas amplas e deselegantes para esconder o corpo marcado e preservar o emprego. “No trabalho preciso usar blusas que cheguem até o cotovelo, cubram o pescoço e não tenham decotes. Nas pernas sempre meias grossas”, afirma Kátia.
Mas é preciso coragem também para encarar a dor de uma série de agulhas perfurando 3 mm de pele durante horas. O mecânico Flávio Melanas, 28 anos, levou 15 anos para decidir tatuar um dragão no braço. Sem camisa, no estúdio de Sérgio, disfarçava o incômodo de ver o sangue escorrendo pelo braço, evento normalíssimo do pós-tattoo. “O desenho levou quatro horas para ficar pronto. Arde um pouco. A sensação é a mesma de estar tomando uma série de beliscões ininterruptamente.”
Para o tatuador Francisco Russo não há motivo para drama. “Quando se percebe que a vida continua depois da tatuagem, o medo passa”, afirma Russo. E quando o garotão percebe que ter tatuado nas costas o rosto do Axl Rose, líder do Guns n’ Roses, uma banda de rock que fez sucesso no início dos anos 90, foi uma burrada? Segundo Caramaschi, a vontade de chamar a atenção é comum na adolescência, mas isso muda. Depois de um certo tempo, o desenho feito no corpo pode perder o significado: a banda deixa de existir, troca-se de namorada, pode-se até mudar de time. Com o passar do tempo também se desenvolvem padrões pessoais, não mais grupais. E, então, pode bater um arrependimento pesado. “Há uma fila de tatuados arrependidos esperando pelo tratamento de remoção gratuito”, diz Lydia Massako Ferreira, chefe do Departamento de Cirurgia Plástica da Escola Paulista de Medicina (EPM), em São Paulo.
Para saber mais
O Brasil Tatuado e Outros Mundos
Toni Marques, Editora Rocco