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No ano 383, poucas décadas após o Império Romano abandonar os deuses do panteão grego e adotar o catolicismo, um professor de 29 anos chamado Agostinho chegou à cidade que hoje é Milão e se apresentou ao bispo local, um amigo de sua mãe chamado Ambrósio. Nenhum dos dois imaginava que um dia seriam canonizados – e se tornariam parte de um outro panteão, o de santos.
Agostinho ficou assustado: ao entrar nos aposentos de Ambrósio sem anunciar sua presença – não era falta de educação, só o hábito da época –, encontrou o bispo lendo em silêncio. “Quando ele lia, seus olhos perscrutavam a página e seu coração buscava o sentido, mas sua voz ficava em silêncio e sua língua quieta”, escreve Agostinho em suas Confissões.
Nem Agostinho nem ninguém em Milão jamais havia visto algo parecido. Na Europa, até mais ou menos o século 17, a única forma concebível de se ler era em voz alta, pronunciando as palavras – mesmo que baixinho. Além disso, a leitura individual era reservada apenas aos mais abastados: de acordo com o historiador Robert Darnton, a maior parte das leituras eram atividades sociais, compartilhadas pelos poucos leitores com os muitos analfabetos.
Só depois surgiu a leitura silenciosa. E, com ela, o leitor como conhecemos hoje.
Assim começa Uma História da Leitura – que, em algumas páginas, está mais para uma declaração de amor à leitura.
O autor, Alberto Manguel, nasceu em Buenos Aires nos anos 1940, filho de judeus. Passou parte da infância em Israel, então um país recém-fundado, onde o pai diplomata trabalhava na embaixada argentina. Voltou para sua cidade natal na adolescência, e se criou em meio ao charme europeu desgastado e o maior número de livrarias por habitante do mundo.
Manguel se relacionou com as palavras de muitos jeitos: foi editor, jornalista, escritor. Mas, acima de tudo, foi um leitor. Com 16 anos, era atendente em uma livraria frequentada por Jorge Luis Borges. Borges já era completamente cego naquela altura de sua vida, e após fazer amizade com Manguel, perguntou se o rapaz não faria o favor de ler para ele (Borges nunca aprendeu Braille).
Entre 1964 e 1968, durante visitas semanais, Manguel recitou dezenas de obras em voz alta para o escritor. Décadas depois, se tornaria diretor da Biblioteca Nacional da Argentina – cargo que Borges ocupou.
Manguel tem um talento raro: sabe de muitas coisas – e põe muitas nisso –, mas também sabe contá-las de um jeito que não é opressivo nem deixa seu leitor se sentido um analfabeto funcional. Acadêmicos de humanas tem o hábito incômodo de empilhar citações. Dá-lhe Epicuro, Virgílio, Rousseau, Sartre. Em geral, o resultado é que ninguém entende muito bem o que essa galera toda está fazendo lá (além de evidenciar que o autor é culto, claro).
Manguel é o rei das citações. Mas não para afetar erudição: ele está mais para uma criança entusiasmada. Se tornou melhor amigo de seus livros e fica tão animado com o que eles têm a lhe dizer que precisa compartilhar isso com as pessoas.
O resultado é que História da Leitura é uma viagem pelo que é realmente cativante no mundo das letras – e uma ode aos esforços dos leitores apaixonados de todas as épocas. Do nobre persa que levava sua biblioteca por aí em 400 camelos aos operários cubanos que pagavam um leitor profissional para recitar obras enquanto eles trabalhavam, muita gente já matou e morreu pelos livros.