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O Banquete

Assim que colocou a cabeça para fora do bueiro, sentiu o ar gelado bofetear seu rosto. Encheu os pulmões com prazer, pois fazia anos que não respirava ar puro. Talvez isso explicasse a tontura que estava sentindo. Aos poucos, acostumou-se com a claridade e pulou para fora do buraco, tomando cuidado para tampá-lo novamente. Não […]

Por Jaisson Pepes
29 Maio 2018, 09h34
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  • Assim que colocou a cabeça para fora do bueiro, sentiu o ar gelado bofetear seu rosto. Encheu os pulmões com prazer, pois fazia anos que não respirava ar puro. Talvez isso explicasse a tontura que estava sentindo. Aos poucos, acostumou-se com a claridade e pulou para fora do buraco, tomando cuidado para tampá-lo novamente. Não poderia ter escolhido lugar melhor, pois aquele canto do parque estava vazio e calmo. Caminhou para o lado de fora e juntou-se à multidão que andava na calçada sem olhar para os lados, como um exército que marcha cegamente atrás do seu comandante rumo à batalha.

    Não precisou andar muito para ver que a cidade continuava igual. Os postos de energização, como foram chamados, estavam em quase todas as esquinas com seus letreiros chamativos. Era nesses locais que as pessoas pegavam sua porção de ração diária. Todos os alimentos tinham sido substituídos por pílulas e flocos havia mais de seis anos. Seguindo leis internacionais, as pessoas agora só podiam comer essas rações ultraprocessadas, para que fosse possível alimentar todos os 12 bilhões de habitantes do planeta. Como protesto, pequenos grupos guerrilheiros passaram a morar no subsolo das grandes cidades para seguir comendo carne: caçavam ratos, pombas, gatos perdidos ou qualquer outro animal que conseguissem capturar. Eles eram chamados de “selvagens” – e Raul era um deles. Ele não se importava com o apelido, preferia viver nos esgotos e comer carne de rato, que era carne, a se alimentar com aquelas pílulas sem gosto.

    Olhando para aquelas pessoas apressadas, começou a se questionar como podiam viver naquele mundo, um lugar onde não tinham o direito nem de comer o que desejavam. Raul foi desperto dos seus pensamentos quando sentiu seu corpo bater contra o de alguém. Antes que pudesse pedir desculpas, viu um homem bem-arrumado olhá-lo com ar de superioridade e soltar o ar pela boca com força, balançando os lábios como um cavalo relinchando, antes de sair apressado. O olhar de indiferença daquele homem fez o sangue de carnívoro de Raul ferver. Como podia aquele sujeito
    se achar superior a ele?

    Raul não pensou duas vezes e partiu ao encalço do metido. Aproximou-se por trás e empurrou o sujeito para dentro de um beco, derrubando-o sobre alguns sacos de lixo. Assustado, o homem tentou levantar-se ao mesmo tempo em que procurava a cartola que havia caído de sua cabeça. Já de pé, se deparou com Raul, que o impedia de sair do beco. Sem nem pensar, tirou a carteira do bolso e a atirou em direção ao ladrão.

    – Pega, é tudo o que tenho. Agora me deixa ir embora, não tenho tempo a perder.

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    Que homenzinho insolente, pensou Raul. Aquela atitude só fez sua raiva aumentar. Era engraçado como os ricos se achavam os donos do mundo e pensavam que podiam comprar tudo e todos. Sem falar nada, Raul pegou uma pedra que estava no chão e desferiu um golpe certeiro na cabeça do infeliz, que caiu duro, sem soltar nenhum gemido.

    Depois de contar o dinheiro que estava na carteira, Raul trocou de roupa com o morto, pois seria um desperdício deixar aquelas roupas apodrecerem ali no beco. Vestido com a roupa nova, sentiu-se elegante e bonito, mas o leve sorriso que havia aparecido em seu rosto foi rapidamente apagado por um
    acesso de fúria: será que as poucas horas que havia passado novamente na cidade já tinham sido suficientes para afetá-lo com o vírus da vaidade e do poder?

    O Banquete
    (Silvio Pequeno/Superinteressante)
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    Ao pegar a cartola que estava sobre os sacos de lixo, algo branco preso ao forro chamou sua atenção. Com cuidado, Raul puxou a pequena ponta do papel que estava aparecendo e viu que se tratava de um convite, com endereço e horário escritos numa bela fonte dourada, mas sem assinatura ou qualquer outra informação.

    Um encontro, pensou, era por isso que o homem estava com tanta pressa. Como a curiosidade sempre fora um dos seus defeitos, decidiu ir ao local indicado no convite. Mas, antes de deixar o beco, olhou mais uma vez para o homem deitado e xingou o pobre coitado, tão velho e tão magro. Se pelo menos o infeliz fosse mais roliço.

    Após caminhar alguns quarteirões, parou a poucos metros do endereço e ficou observando a pequena porta de uma antiga loja. Achou estranho as janelas tampadas com pedaços de madeira, mas tinha certeza de que o endereço marcado no convite era aquele. Quando estava pronto para desistir e seguir seu caminho, um casal apareceu, bateu à porta e entrou. Durante os minutos seguintes, várias outras pessoas, todas elegantemente vestidas, foram chegando, batendo à porta e entrando. Assim que o movimento de pessoas parou, Raul dirigiu-se até o local e bateu à porta. Não demorou muito para um homem grandalhão aparecer do outro lado e o analisar dos pés à cabeça.

    – Convite.

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    – Só um segundo – disse enquanto pegava o convite no bolso do blazer.

    – Obrigado, seja bem-vindo. Pegue a escada no fim do salão.

    O ambiente estava escuro e vazio, com apenas uma iluminação fraca vinda do fim do cômodo. À medida que descia a escada, Raul ouvia um misto de risadas e música; ao chegar no último degrau, deu de cara com um amplo salão, finamente decorado, com dezenas de mesas redondas cobertas com toalhas de algodão branquíssimo. Ainda sem entender o que era aquele lugar, caminhou até uma das mesas e sentou-se.

    A todo instante, garçons serviam champanhe enquanto as pessoas brindavam e sorriam. Era tudo tão lindo que, por um momento, Raul pensou que estivesse num sonho. De repente, a música parou, as pessoas se viraram para o pequeno palco onde estava a banda e ficaram em silêncio. Entre os músicos, surgiu um homem baixinho, de cabelos brancos e bigode preto, que pegou o microfone e começou a falar.

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    – Boa noite, confrades. É com muita alegria que nos reunimos, mais uma vez, para aproveitar do maior de todos os prazeres: o da gula. Comer bem é saber viver. Bon appétit!

    Assim que o sujeito acabou de falar, dezenas de garçons, segurando pratos tampados com cloches de prata, entraram no salão e serviram, um a um, todos os convidados do banquete. E que banquete: ostras, cordeiro, atum, cogumelos, massas. Raul comeu com prazer cada prato, molhando no pão os restos de molhos que sobravam. Finalmente entendeu por que o homem da cartola estava com tanta pressa. Coitado, deve ter morrido com água na boca, pensou.

    Depois dos pratos quentes, foi a vez das sobremesas. Tartelettes de frutas, macaron, éclair e bombas recheadas. Como era bonito ver a felicidade estampada no rosto das pessoas e ouvir as gargalhadas frouxas e vozes embargadas pelo álcool. Mesmo com a barriga estufada de tanta comida, Raul não estava satisfeito. Queria mais. Foi à cozinha e olhou para os restos dos pratos deliciosos, mas nada o apeteceu. Queria algo que não fora servido até então. Queria algo que havia aprendido a apreciar nos cantos mais escuros do esgoto.

    Com a boca cheia de saliva, Raul levantou-se e andou pelo salão, até bater o olho em uma das mesas e encontrar o que buscava. Babando como um cachorro, Raul se jogou por cima dos pratos e cravou os dentes no generoso decote de uma mulher vestida de vermelho. Desesperadas com a cena, as pessoas começaram a gritar e a correr em direção à escada, derrubando e pisando em tudo que viam pela frente. Enquanto isso, o selvagem Raul finalmente fazia seu banquete.

    Jaisson Pepes é publicitário e escritor, autor dos livros de contos O Chantagista e Bandeira 2.

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