O Oscar é uma celebração do cinema americano. Mas, vez ou outra, produções estrangeiras conseguem um espacinho na categoria principal, a de Melhor Filme. Quando isso acontece, é comum que os longas apareçam também em outra disputa, a de Melhor Filme Internacional.
Foi assim em 2022, com o japonês Drive My Car, e em 2023, com o alemão Nada de Novo Sob o Front. Ambos foram indicados a Melhor Filme – e venceram como Melhor Filme Internacional.
(Até hoje, o único filme a vencer ambos os troféus foi o hit sul-coreano Parasita, em 2020.)
Em 2024, há dois estrangeiros entre os dez principais indicados: o britânico Zona de Interesse, dirigido por Jonathan Glazer, e o francês Anatomia de uma Queda, de Justine Triet. Contudo, só o filme de Glazer concorre em Filme Internacional – e é um dos favoritos a levar o prêmio.
Em cartaz no Brasil desde o dia 25 de janeiro, Anatomia de uma Queda conta a história de Sandra (Sandra Hüller), uma escritora alemã que vive com o marido, Samuel, e o filho de onze anos, Daniel, que tem baixa visão. Eles moram em uma casinha isolada nos Alpes franceses.
Certo dia, Samuel cai de uma janela do sotão e morre. A partir daí, o filme vira um drama de tribunal, já que Sandra é acusada de matar o marido. Veja o trailer:
Anatomia de uma Queda foi um sucesso de público e crítica na França desde o seu lançamento por lá, em 2023. Venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, uma das principais láureas do cinema. Foi distribuído pela Neon (a mesma empresa de Parasita) e, em janeiro, levou dois Globos de Ouro (Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Roteiro Original para Triet).
Ou seja: o longa tinha tudo para fazer uma boa campanha para o Oscar, com chances reais de vitória como Filme Internacional. Por que, então, ele ficou de fora? Para entender, é preciso primeiro analisar como essa categoria funciona.
Troféu gringo
Entre 1947 e 1955, o Oscar entregou prêmios honorários para filmes produzidos fora dos EUA. Mas era algo irregular (em 1954, por exemplo, não houve nenhum vencedor). Em 1956, criou-se a estatueta de Melhor Filme Estrangeiro, cujo nome mudou para Filme Internacional em 2020.
No geral, quem recebe esse troféu é o diretor do filme. Mas considera-se que a vitória é do local de origem da produção. É que, ao contrário de outras categorias (cuja inscrição no Oscar é feita pelos estúdios), aqui são os próprios países que elegem um representante para a disputa.
O filme, claro, precisa obedecer a algumas regras: deve ser produzido fora da terra do Tio Sam; ter mais de 40 minutos de duração; possuir mais de 50% do diálogo em um idioma que não o inglês; estrear numa sala comercial de cinema e ser exibido por ao menos uma semana.
Cada país possui um órgão responsável pela escolha e submissão do filme. No Brasil, por exemplo, quem cuida disso é a Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais. Para o Oscar 2024, uma comissão de 25 membros da entidade elegeu o documentário Retratos Fantasmas como o nosso representante – que acabou ficando de fora dos indicados.
Na França, a comissão deste ano tinha sete membros. Por quatro votos a três, o grupo escolheu o filme O Sabor da Vida ante Anatomia de uma Queda.
O Sabor da Vida conta a história de um relacionamento entre uma cozinheira e o seu patrão. Ao longo de duas décadas, os dois compartilham o amor pela gastronomia – e se apaixonam um pelo outro. No Brasil, estreia dia 29 de fevereiro.
Segundo uma reportagem da revista Variety, O Sabor da Vida foi uma escolha segura da comissão. É um filme estrelado por Juliette Binoche, premiada atriz francesa, e tem direção do vietnamita Tran Anh Hung, indicado ao Oscar em 1994 – e que, no ano passado, levou o prêmio de Melhor Diretor em Cannes.
Mas apostaram no cavalo errado: O Sabor da Vida até entrou na lista de 15 pré-selecionados para Filme Internacional, mas não se tornou um dos finalistas. Enquanto isso, Anatomia de uma Queda conquistou cinco indicações ao Oscar (cada categoria, afinal, possui critérios próprios de seleção, e não dependem da nomeação do país). São elas: Filme, Atriz (Sandra Hüller), Montagem, Roteiro Original e Direção.
Sem papas na língua
Justine Triet é a 10ª mulher na história a ser indicada na categoria de direção. E o seu comportamento recente pode explicar a decisão da comissão francesa.
Em maio de 2023, durante seu discurso de agradecimento em Cannes, Triet mencionou o governo francês – e o mal que ele causa à cultura do país. A diretora não poupa críticas (e palavrões) quando sobe ao palco de festivais e premiações.
Ainda segundo a Variety, que entrevistou profissionais próximos a membros da comissão, o posicionamento de Triet pode ter desagradado os mais conservadores, que criticam o discurso de Triet: ela teria sido foi hipócrita ao criticar o governo francês, uma vez que seu filme foi, em parte, financiado por subsídios estatais.
Seja como for, não é a primeira vez que uma decisão da comissão francesa gera discussão. Em 2022, o grupo elegeu o terror Titane como seu representante no Oscar. Dirigido por Julia Ducournau, o filme havia levado a Palma de Ouro naquele ano. O problema é que a outra opção, o drama O Acontecimento, falava sobre aborto em um ano em que a Suprema Corte dos EUA derrubou uma decisão que garantia o direito à prática.
O Acontecimento, então, seria uma opção com boas chances no Oscar, dada à importância e à “quentura” do assunto. A decisão, amplamente criticada na França, provocou a saída de membros antigos da comissão.
Mas talvez não seja o suficiente. Uma das saídas para garantir melhores escolhas talvez seja aumentar o número de integrantes da comissão, além de adotar critérios mais objetivos, como um sistema de pontuação, o que ajudaria produções que ganharam prêmios ao longo da temporada, por exemplo. A última vez que a França ganhou o Oscar de Melhor Filme Internacional foi há mais de 30 anos, com o longa Indochina (1992).
Por ora, resta acompanhar o desempenho de Anatomia de uma Queda nas outras categorias. Até hoje, só dois vencedores da Palma de Ouro também ganharam o Oscar de Melhor Filme: o americano Marty (1955) e Parasita (2019).
A 96ª edição do Oscar rola no dia 10 de março.