Vemos com olhos, neurônios e até com nosso repertório cultural.
Texto: PiU Comunicações | Design: Andy Faria
São Jorge mora na Lua. Isso aqui no Brasil. Em outros países e épocas, com outras referências culturais, os moradores são uma mulher tecendo, um elefante pulando do penhasco ou um singelo coelho, como conta o astrônomo americano Carl Sagan no livro O Mundo Assombrado pelos Demônios. As culturas mudam, mas é universal a tentativa de dar significado e coerência às coisas percebidas no mundo (mesmo que, objetivamente, elas não passem de crateras distantes).
Essa tendência foi um dos princípios estabelecidos pelos teóricos da psicologia da forma, também chamada de gestalt, para explicar como nosso sistema nervoso capta e processa objetos e formatos. A gestalt (palavra que significa algo como “o que está diante dos olhos”) nasceu na Universidade de Frankfurt, na Alemanha, no início do século 20.
Seus estudiosos concluíram que a relação entre os elementos numa cena, mais que os elementos individuais, influenciam muito a percepção final de uma pessoa. Três pontos desenhados aleatoriamente numa folha evocam um triângulo, mesmo sem nada mais na folha. Na retina, os pontos são só pontos, mas o cérebro se encarrega de ligá-los à imagem de algo que já está no seu arquivo: o triângulo.
Isso ajuda a entender o fenômeno das imagens ambíguas a seguir. Há sempre duas formas de enxergar o que está nelas, mas é impossível ver as duas ao mesmo tempo – cada percepção exclui automaticamente a outra. Seu cérebro é incapaz de ver o desenho como ele é de fato – rabiscos amorfos que contêm os traços de diversas figuras possíveis – porque isso não representa nada para o seu arquivo pessoal. O que tentamos, quase sempre, é encontrar alguma ordem no caos.
Indo ou vindo
• Um desafio
O cavaleiro está indo embora ou chegando, neste cartaz de 1904 que anunciava um jogo de beisebol?
• Duas respostas
Numa imagem chapada e sem muitos detalhes além do contorno, nossa abstração é capaz de formar as duas versões da cena, uma de cada vez. Um possível tira-teima: um cachorro costuma seguir seu dono, e não ultrapassá-lo.
Garrafa ou taça
• Um desafio
A estante guarda taças ou garrafas?
• Duas respostas
Depende do que você elege como objeto. Para os teóricos da psicologia da forma, nosso sistema perceptivo funciona separando a figura (o contorno que você de fato “vê”) do fundo (interpretado como contínuo e sem forma).
Texto
• Um desafio
Há algo reconhecível na faixa?
• Duas respostas
Figuras familiares como a seta e as formas geométricas em branco nos fazem considerar a parte preta como fundo e ignorá-la. Mas tente ler apenas o que está em preto. É o verbo fly (“voar”, em inglês).
Setas
• Um desafio
As setas são laranja ou pretas?
• Duas respostas
As duas coisas. Ou você enxerga 4 setas laranja, em cruz, apontadas pra fora, ou 1 quadrado laranja com 4 setas pretas saindo de suas laterais e apontando para o centro.
Olhos na selva
• Um desafio
Achar 11 faces nesta ilustração da americana Bev Doolittle.
• Duas respostas
é evidente que o desenho é de uma floresta, com árvores, bichos, galhos e pedras. Mas, olhando por mais tempo, seu cérebro já começa a praticar uma de suas manias: formar contornos de rostos usando elementos desconexos.
SACANAGEM E PUREZA
Ser bom, ser ruim, ser puro, ser pervertido, tudo pode ser uma questão de ilusão de ótica. Só que essa brincadeira também tem um fundo de verdade.
TESTE DE INOCÊNCIA
O que você viu dentro da garrafa acima? Sacanagem? É a resposta óbvia para adultos. O curioso é que crianças pequenas costumam ser incapazes de ver o casal e enxergam só os golfinhos. Como? É, há 10 cetáceos dentro da garrafa (nós o ajudamos a voltar ao estado de pureza e vê-los também, foque a atenção nas manchas escuras do desenho. Em volta da cabeça deles há dois golfinhos se “beijando”. Entre as pernas dela há um rabo do bicho. E do décimo cetáceo aparece só o rabo, no canto inferior direito).
Há interpretações complementares do fenômeno. Do ponto de vista neurológico, é uma operação muito mais complexa compor o casal com os elementos da ilustração do que ver só golfinhos separados. “A criança consegue ver os elementos, mas não juntá-los.
Essa competência, a da abstração, é adquirida com os anos”, diz Marcelo da Costa, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Neurociências e Comportamento do Instituto de Psicologia da USP. Do ponto de vista dos princípios gestaltistas, enxergar a cena erótica também depende de familiaridade com o tema e entendimento de seu significado: “Os golfinhos estão mais próximos do universo de interesses e aprendizados da criança”, afirma Luiz Lilienthal, coordenador do Instituto Gestalt de São Paulo.
TESTE DE LOUCURA
A brincadeira da abstração pode ser bem mais séria, como mostra a imagem acima, a quinta prancha de uma sequência de 10 figuras do Teste de Rorschach, criado pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach. No teste, uma pessoa é estimulada a descrever o que vê nos desenhos, e isso dá indícios ao psicólogo sobre sua estrutura psíquica. As pranchas poderiam detectar indícios de neurose, patologia narcísica e psicose. “Os 10 borrões são figuras amorfas. Olhar o borrão e enxergar uma borboleta é o que todo mundo faz.
Enxergar uma pessoa matando outra, uma mulher com uma corda no pescoço ou uma ave sobrevoando uma caça não é normal”, explica Marcelo. A aplicação do teste, entretanto, é polêmica, porque já existem métodos menos herméticos para diagnosticar problemas de comportamento. Se seu terapeuta perguntar o que você vê, tente dar uma resposta que o convença de que você não é (muito) esquisito. Se você viu um urubu estropiado, não precisa se preocupar.