Nossa concepção de mente nunca mais foi a mesma depois de Freud. Ficou repartida entre inconsciente e consciente, e povoada de desejos proibidos.
Texto: Alexandre Carvalho | Edição de arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images e Wikimedia Commons
“He kept us out of war!”. Esse slogan – “Ele nos manteve fora da guerra” – funcionou que foi uma beleza na campanha de reeleição do presidente Woodrow Wilson em 1916, garantindo aos Democratas mais quatro anos na Casa Branca. O sucesso da plataforma pacifista era uma confirmação: o povo americano não queria se meter no imbróglio da Primeira Guerra Mundial, lá do outro lado do Atlântico. Enquanto a carnificina traumatizava a Europa, os Estados Unidos adotavam uma posição de neutralidade pragmática: não disparavam nem recebiam um tiro sequer, mas turbinavam a própria economia com as oportunidades comerciais abertas pelo conflito. Afinal, a Tríplice Entente – aliança militar entre França, Reino Unido e Império Russo – tinha urgência de mais armas e alimentos.
Basta lembrar que o combate tinha começado em 1914 para ver que esse arranjo ideal – paz na sua terra e lucro com a guerra – durou bastante. Pelo menos até um ponto em que não deu mais pé. Em 1917, os EUA se viram obrigados a mudar de estratégia, fazendo sua primeira entrada tardia e salvadora num conflito internacional do século 20. Mas quais os motivos dessa mudança de planos?
Primeiro porque a tal neutralidade era espalhafatosamente da boca para fora: o país enviava recursos e fazia empréstimos financeiros só para um dos lados da contenda – o que, claro, não deixava alemães e austríacos, o outro lado, exatamente felizes com os americanos. Além disso, os EUA também começaram a desconfiar que seus clientes poderiam acabar perdendo a guerra, e isso talvez levasse a uma situação que, aos olhos do capitalismo, é pior que a morte: a malfadada inadimplência.
Quem pagaria pelos capacetes, canhões, roupas e toda a comida que o país vinha exportando, se tudo nesses países virasse terra arrasada? Mas a gota d’água só pingou quando a Alemanha achou por bem autorizar seus submarinos a violar leis de não agressão marítima, afundando navios americanos em águas internacionais. Motivo para partir para a briga não faltava. O que faltava mesmo era combinar com os pais dos soldados americanos. Se Wilson tinha sido reeleito garantindo que não mandaria seus jovens para a matança na Europa, como convencer a população de que ir à guerra tinha propósitos mais valiosos que qualquer promessa de campanha?
Então, para passar uma borracha no que foi dito e mexer com a cabeça da sociedade, a administração federal se empenhou em criar a maior máquina de propaganda política já vista no planeta – um bombardeio agressivo de mensagens, diretas e subliminares, em favor da guerra, louvando os ideais de patriotismo, democracia e liberdade. Daí nasceram incontáveis filmes, livros, pôsteres e folhetos, além de anúncios e artigos publicados nos principais jornais do país. Nesse esforço de convencer a opinião pública, o governo ainda recrutou celebridades, pastores e professores para advogar pela causa, patrocinando palestras e debates. Com isso tudo, o governo ganhou com folga a guerra dentro de casa. O povo foi convencido, e 4 milhões de militares foram mobilizados – desses, 116 mil não voltariam vivos.
O resultado, você sabe: com a ajuda fundamental dos americanos, a Tríplice Entente venceu a guerra em 1918, e os alemães tiveram de engolir as restrições impostas pelo Tratado de Versalhes. No ano seguinte, o presidente dos EUA foi à França participar da Conferência de Paz que estabeleceria as condições aos derrotados, e o que se viu foi uma recepção calorosa e vibrante dos parisienses. Ainda com a propaganda americana reverberando, Wilson foi aclamado como o grande libertador do povo europeu – o líder de um novo mundo, democrático e de livre comércio, salvo da ameaça dos impérios totalitários.
Quem viu toda essa empolgação de perto foi Edward Bernays (1891-1995), que tinha feito parte da engenharia de convencimento, e por isso foi convidado pelo governo americano para ir à França na ocasião. Aos 28 anos, esse jornalista – que se tornaria pioneiro da função de relações públicas no mundo – ficou maravilhado com o poder da propaganda de mexer com as emoções das massas. E então chegou a uma reflexão que mudaria o seu destino dali para a frente: se é possível introduzir uma sugestão na cabeça de milhões de pessoas num período tão complicado como a guerra, com certeza dá para fazer em tempos de paz. Mas como?
Uma vez em Paris, Bernays – filho de imigrantes austríacos – aproveitou a estada na Europa para se conectar com a família que tinha ficado no continente. E mandou um presente para um tio querido, irmão de sua mãe: uma caixa de charutos cubanos. Em retribuição, recebeu do tio uma cópia de um livro escrito por ele: Conferências Introdutórias à Psicanálise. Bernays de cara ficou fascinado pela obra, especialmente pela ideia desse seu tio, Sigmund Freud, de que o ser humano é dominado por desejos irracionais – que permanecem numa parte obscura da mente, respondem pelos nossos comportamentos e, mais importante ainda, por nossas escolhas. Foi aí que Bernays teve a grande ideia de sua vida: fazer dinheiro explorando as descobertas do seu parente amante de charutos, influenciando operações mentais que a maioria das pessoas nem tinha noção de que existem.
Outro grande teórico das relações públicas, o americano Scott Cutlip (1915-2000), escreveu: “Quando alguém se encontrava com Bernays, não demorava nada até que seu tio fosse trazido à conversa. A relação dele com Freud estava sempre na vanguarda do seu pensamento”. Agindo assim, Edward Bernays tornou-se figura-chave por trás do impulso ao consumismo nos EUA na primeira metade do século 20. E foi logo chamando a atenção da indústria com uma campanha revolucionária – curiosamente, relacionada ao hábito de fumar, tão caro ao tio Sigmund.
Contratado por George Hill, presidente da corporação americana de tabaco, Bernays recebeu uma missão que parecia impossível à época: quebrar o tabu de que mulheres fumando em público era uma coisa grotesca, um atentado à moral e à decência. Empolgadíssimo com as ideias de Freud, Bernays pediu ajuda a um dos primeiros psicanalistas dos EUA, Abraham Arden Brill (1874-1948) – porque seu tio mesmo nunca quis se envolver com a mercantilização das próprias teorias. O que o sobrinho queria descobrir, via psicanálise, era o que o cigarro significava para as mulheres, e o que poderia vir a significar.
Brill, que foi tradutor de obras de Freud, do alemão para o inglês, respondeu com um simbolismo que hoje é clássico, mas na época podia ser tão surpreendente quanto ultrajante: o cigarro simbolizava o pênis e, consequentemente, o poder masculino sobre a mulher. Bernays entendeu, então, que o desafio estava em mostrar às consumidoras que fumar representaria se contrapor ao domínio do homem, porque “a mulher teria seu próprio pênis”.
Para chamar atenção do país inteiro a essa ideia, Bernays organizou um manifesto fake, em 1929, durante um dos eventos mais midiáticos daqueles tempos nos EUA: a Parada de Páscoa em Nova York. Pegando carona no movimento sufragista, que tinha recém-conquistado o direito de voto às mulheres, ele convenceu um grupo de debutantes ricas a esconder cigarros sob as roupas. Elas deviam juntar-se ao desfile e, num determinado momento, sob o comando de Bernays, acender seus cigarros Lucky Strike todas ao mesmo tempo, e da maneira mais teatral possível. Sim, era um flash mob. Mas antes ele havia preparado a imprensa: espalhou que um grupo de feministas estaria armando um escândalo bem no meio da parada. Um protesto chamado “Tochas da Liberdade”.
A encenação, claro, foi um sucesso. Avisados sobre o “protesto”, os fotógrafos ficaram a postos, de modo que não faltaram registros daquelas mulheres jovens e bonitas fumando. E a notícia viralizou – tanto quanto seria possível com os meios de comunicação da época. Os nova-iorquinos haviam testemunhado um grito impactante de igualdade entre os gêneros, e os costumes nunca mais seriam os mesmos.
A partir daquele ato histórico, mais e mais mulheres começaram a fumar sem disfarces nos EUA, e a publicidade do cigarro passou a ser dirigida para elas também. Assim, o público-alvo da indústria tabagista dobrou de tamanho. E o sobrinho de Freud se consagrou. Tanto que não parou mais de usar as teorias do tio para aquecer o comércio – associando mercadorias e serviços aos desejos sobre os quais não temos uma elaboração racional.
Essa “psicanálise do consumo” transformou toda a propaganda nos EUA e, posteriormente, no resto do mundo. Até então, a ideia geral era de que, se você expusesse ao consumidor todos os fatos e informações técnicas sobre um produto, isso seria suficiente para convencer as pessoas a colocar a mão no bolso. A grande contribuição de Edward Bernays ao capitalismo foi uma mudança do conceito de “você precisa desse produto” para o de “esse produto vai melhorar sua autoestima”.
Afinal, a ideia de que, ao fumar, as mulheres se tornariam mais poderosas e livres é completamente irracional – e até absurda. Fumar só deixa a gente sem fôlego, com a pele ruim e provoca câncer. Mas, de fato, na época, e até bem pouco tempo atrás, essa “conquista” deu às mulheres um sentimento de independência.
Mexer com as nossas emoções ocultas foi tão importante para a economia naquelas primeiras décadas do século passado quanto ainda é hoje. E isso se comprova com uma simples ida ao supermercado. Você acha mesmo que faz decisões racionais quando está rodeado por centenas ou milhares de produtos? Não é bem assim: diante de cada barra de chocolate ou macarrão instantâneo na prateleira, nosso cérebro toma uma decisão de compra antes que a consciência entre em ação. O núcleo accumbens, que é a parte cerebral responsável por fabricar boas sensações, avisa baixinho que você gosta muito de miojo sabor galinha caipira. Ele sabe que você adora aquele gosto ultraforte de tempero químico e então inunda seu cérebro com dopamina – o hormônio do prazer. Você não pensa conscientemente em nada disso. Só tem uma sensação boa e decide pegar logo cinco pacotes de miojo (é tão baratinho…).
Repare também que as frutas e legumes costumam ficar bem na entrada do Pão de Açúcar. É assim porque produtos saudáveis logo de cara aplacam os opositores da nossa mente. No córtex insular, responsável por estímulos emocionais e respostas fisiológicas, processamos um sentimento de rejeição a tudo o que é ruim no mercado: cheiro de peixe podre, preços altos e comida que faz mal. Se essa parte do cérebro fica agitada, não compramos nada. Mas a entrada do mercado cheia de “produtos paz e amor” dá uma anestesiada nesse desmancha-prazeres. Então assumimos que ali é lugar de gente feliz e enchemos o carrinho também nas seções de produtos industrializados – e bem mais caros.
Se desconfiasse que suas ideias acabariam virando isca em ações promocionais do varejo, para vender de lingerie a carro usado, Freud talvez jogasse tudo o que escreveu na lixeira. Mas ele teve reconhecimento ainda em vida pelo alcance muito maior de suas teorias, de modo que provavelmente morreu satisfeito com sua criação. O fato é que a investigação moderna sobre os nossos processos mentais, e especialmente sobre como eles influenciam nossas emoções e comportamentos – no uso do cartão de crédito, no tesão, na paz e na guerra –, só chegou a esse patamar sofisticado graças à principal contribuição de Sigmund Freud para o pensamento do século 20: o inconsciente.
O poço dos desejos
Tudo o que você já leu ou ainda vai ler sobre Freud passa pela ideia do inconsciente. Complexo de Édipo, mecanismos de defesa do ego, pulsão de morte… nenhuma dessas coisas aconteceria de forma consciente na cabeça da gente. Você nunca pensa, entre uma estação e outra do metrô, “opa, agora me deu uma vontade meio louca de matar o meu pai e casar com a minha mãe. Mas, como isso é bizarro, vou só falar mal dos discos de bolero que o velho gosta”. Ou então: “Meu marido é um traste, me trai toda sexta-feira, quando diz que vai jogar bola com os amigos, mas eu finjo que não sei para preservar a minha saúde mental dessa situação degradante”. Segundo Freud, embora esses desejos e autodefesas existam e influenciem as nossas atitudes e até a nossa personalidade, na maior parte do tempo eles ficam reclusos lá no fundão da nossa mente – uma parte que, aliás, toma conta do negócio todo.
Hoje, mais de um século depois dos primeiros postulados de Freud sobre o assunto, está claro para qualquer um que, uma hora ou outra, somos traídos por desejos secretos, fantasias e medos que não admitimos nem para nós mesmos. Por outro lado, essa compreensão da influência do inconsciente é motivo de esperança: a de que nossas ansiedades, timidez, maus comportamentos, nossas relações pessoais e até o empenho diante de objetivos de vida… tudo isso pode ser mais trabalhado. Quiçá na terapia.
Mas essa descoberta do pai da psicanálise nunca teria existido se não houvesse, antes, uma filosofia toda dedicada a escrutinar os mistérios do pensamento. “Poetas e filósofos descobriram o inconsciente antes de mim; o que eu descobri foi o método científico para estudá-lo”, Freud admitiu. Bom, nem sempre era tão científico assim. Mas o que importa agora é que ele tinha razão ao reconhecer que, se foi o grande teórico do inconsciente, não foi seu inventor.