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O Livro Sagrado – Quem escreveu a Bíblia

Exilados na Babilônia, os israelitas editaram seu passado e fizeram de Iahweh o senhor da história humana.

Texto: Reinaldo José Lopes | Edição de Arte: Estúdio Nono / Cris Kashima
Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images

D

eus nasceu das cinzas da catástrofe. O evento que definiria a personalidade, as funções e a abrangência cósmica do Deus único pelos milênios seguintes foi a destruição de Jerusalém e das demais cidades de Judá. Paradoxalmente, um povo sem Estado e sem autonomia política passaria a conceber sua divindade como o imperador inconteste do Universo.

Com o fim do poderio assírio, outra potência da Mesopotâmia ambicionava controlar o Oriente Próximo. Estamos falando da Babilônia, comandada pelo rei Nabucodonosor. Os babilônios, naturalmente, queriam tomar para si o controle das províncias e dos reinos vassalos da Assíria na costa do Mediterrâneo, um pacote que incluía Judá. Ao mesmo tempo, porém, os faraós do Egito, que haviam apoiado os assírios até o último instante, tinham voltado a enxergar Canaã como seu quintal natural. Resultado: os herdeiros de Josias se viram presos entre duas superpotências.

Primeiro, em 597 a.C., Nabucodonosor se contentou em depor o jovem rei Joaquin, deportar para a Babilônia cerca de 10 mil membros da elite judaíta e colocar no trono de Jerusalém um monarca-fantoche, Sedecias, tio do rei destronado. Mesmo assim, Sedecias se rebelou e, após um ano e meio de cerco, as forças da Babilônia tomaram a cidade e a destruíram completamente, incluindo o Templo de Iahweh, em 587 a.C. Seguiu-se uma nova deportação. A Cidade Santa tinha sido esvaziada de seus habitantes, embora a maior parte da população pobre de Judá provavelmente tenha ficado em sua terra.

É muito difícil saber com precisão como os diferentes grupos da elite de Judá que sobreviveram à destruição de Jerusalém e foram levados como prisioneiros para a Mesopotâmia reagiram à catástrofe. Parece que o movimento “deuteronomista”, ou seja, o grupo ligado às reformas de Josias, defendia a submissão aos babilônios antes da destruição do reino, como forma de evitar o pior da ira de Nabucodonosor.

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De fato, essa é a posição básica do livro do profeta Jeremias. Por outro lado, é possível que os membros da elite favoráveis a uma rebelião contra a Babilônia fossem também os que mantinham uma posição mais próxima da religião israelita tradicional, ainda politeísta.

Ora, se esse quadro básico estiver correto, pense no que acontece quando Jerusalém cai. A reação natural do “partido reformista” seria atribuir a derrota às tendências pagãs de seus opositores. Os membros da elite que continuavam apegados à tradição de Josias e dos profetas tinham toda a motivação para tentar corrigir o que, do ponto de vista deles, havia dado errado na aliança entre o povo de Israel e Judá, de um lado, e Iahweh, do outro.

Um ponto parecia estar claro: chega de cultuar qualquer outra divindade que não o Senhor, e quem sabe as coisas comecem a entrar nos eixos daqui para a frente, raciocinavam eles.

Temos bons motivos para acreditar que o modelo tradicional da crença em Iahweh, que fazia dele “apenas” o deus nacional de Israel e Judá, provavelmente não funcionava mais na era sanguinolenta inaugurada pelas destruições e deportações em Samaria e Jerusalém. Do ponto de vista dos pequenos Estados da Palestina, a era das nações tinha acabado – agora, eles estavam tentando sobreviver na era dos impérios.

Se você ainda acreditava no poder e justiça das ações de Iahweh, isso significava que o Senhor, em vez de se preocupar apenas com Israel e Judá, na verdade tinha mais atribuições internacionais do que o secretário-geral da ONU. Afinal, quem trouxera os assírios e os babilônios dos confins do Oriente? Quem poderia derrubar esses mesmos impérios, senão o Senhor?

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A religião israelita tinha de se adaptar à pressão predatória imperial, ou então desapareceria. A destruição dos reinos de Judá e Israel, segundo essa perspectiva, não era uma prova da impotência de Iahweh e da superioridade dos deuses da Mesopotâmia, mas uma evidência claríssima de seu poder ilimitado.

Isaías 2.0

Em resumo, essa é a mensagem do misterioso poeta conhecido pelos estudiosos modernos como Deutero-Isaías, ou Segundo Isaías, cujos oráculos começam no capítulo 40 do livro bíblico de Isaías (é lógico). A tradição judaica e cristã costumava atribuir todos os textos proféticos desse livro ao chamado Isaías de Jerusalém, o contemporâneo do rei Ezequias que viveu no século 8º a.C., mas o consenso entre os estudiosos modernos é que, a partir do capítulo 40, a reviravolta literária e cultural do livro é tão grande que não dá para imaginar que o resto da obra provém da mesma pena (ou da mesma boca) que compôs os capítulos anteriores.

A atribuição de uma identidade separada ao Deutero-Isaías deriva, entre outros fatores, da mudança abrupta de cenário – basta começar o capítulo 40 para não haver mais menção alguma ao nome de Isaías, que aparecia com alguma frequência nas partes anteriores do livro – e às consideráveis modificações de estilo, vocabulário e ideias.

Nessa altura do campeonato, a Babilônia não é mais aquela. Uma sucessão de reis fracos ou politicamente inábeis acabara enfraquecendo a hegemonia babilônica no Crescente Fértil, e uma nova potência em ascensão, a Pérsia (centrada no atual Irã), liderada pelo rei Ciro, o Grande, tinha começado a devorar pelas beiradas a zona dominada pelos mesopotâmicos. O interessante é que Ciro é uma figura importantíssima nas profecias do Segundo Isaías.

<strong>Ciro, o Grande, representado com traços dos antigos espíritos protetores da Mesopotâmia.</strong>
Ciro, o Grande, representado com traços dos antigos espíritos protetores da Mesopotâmia. (Reprodução/Divulgação)

No novo javismo internacionalizado, é como se o monarca da Pérsia tomasse o lugar dos antigos reis da dinastia de David. É difícil segurar a vontade de especular aqui: será que o profeta decidiu louvar o rei persa como uma estratégia para estimular os exilados de Judá a solaparem o poder babilônico, que já estava bambeando? Ou será que a ideia de profetizar em honra do soberano veio quando Ciro finalmente conquistou a Babilônia praticamente sem luta, no final de outubro de 539 a.C.?

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Seja como for, o rei persa era o arquétipo do vencedor politicamente habilidoso, que faz de tudo para trazer para o seu lado as elites das regiões conquistadas, em especial por mostrar o maior respeito possível pela religião de seus novos súditos. Talvez interessado em garantir que as fronteiras ocidentais de seu império fossem ocupadas por um grupo com lealdade acima de qualquer suspeita, o rei persa também autorizou o retorno de ao menos parte dos exilados de Judá para Jerusalém, bem como a reconstrução do templo.

Para o Segundo Isaías, essa reviravolta quase milagrosa era a prova de que o Senhor era o único e verdadeiro Deus. E esse vidente proclama ainda a ideia de que, de alguma forma milagrosa, o futuro glorioso incluirá o reconhecimento por parte dos pagãos de que Iahweh é o único Deus. As nações e suas riquezas fluirão para Jerusalém e seu templo gloriosamente reconstruído, toda forma de guerra será abolida e até a natureza passará por uma metamorfose radical, na qual a violência deixará de existir.

Os exilados devem ter carregado para a Babilônia uma variedade considerável de documentos sobre o passado israelita, incluindo lendas sobre a origem dos reinos e de suas dinastias, histórias sobre os patriarcas, oráculos de profetas e o célebre “livro da Torá” de Josias. Se a ideia era dar início a um projeto de reconstrução nacional com base na fé em Iahweh, o desafio era tentar conferir algum tipo de perspectiva unificada a essa diversidade de memórias históricas, lendárias e mitológicas.

O Antigo Testamento conseguiu a façanha de produzir essa perspectiva, ou ao menos uma ilusão dela, de um jeito que parece estranho para a nossa sensibilidade literária e lógica de hoje, mas que faz muito sentido no contexto do mundo antigo. A ideia central é: tradição não se joga fora – ao menos não totalmente.

Em vez de serem editadas para conseguir uma consistência interna completa, as tradições aparentemente conflitantes muitas vezes são justapostas, lado a lado, porque várias delas são “canônicas”, ou seja, possuem autoridade moral e religiosa mais ou menos equivalente para quem está editando o texto final.

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Esta talvez seja uma boa hora para contar, em linhas gerais, como a estrutura do Antigo Testamento começou a se delinear para valer no exílio babilônico e no período que o seguiu. Apesar de ter recebido muitos ataques, a chamada hipótese documentária ainda é a maneira mais aceita de explicar a composição do Pentateuco ou Torá, o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia Hebraica (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio).

Em resumo, estamos falando de uma sopa de letrinhas: J, E, P e D, que correspondem a diferentes fontes literárias (provavelmente escritas, mas talvez incluindo também elementos significativos de tradição oral), as quais teriam sido fundidas e editadas para dar origem ao Pentateuco que conhecemos.

Os textos da fonte J parecem destacar com frequência a geografia e as tradições lendárias e históricas ligadas ao território do reino de Judá. Seu estilo é vívido, concreto e direto, muito pouco teológico. Sua perspectiva parece ser anterior ao exílio. Uma ambientação na corte do rei Ezequias de Judá talvez não seja um mau chute a respeito das origens de J.

Se J tem todos os sinais de um documento que retrata a perspectiva judaíta de Deus e da história israelita, a fonte E é considerada uma espécie de porta-voz dos javistas do reino do Norte, escrevendo lá pelo século 8º a.C. A letra E vem de “Elohim”, uma palavra hebraica curiosa: embora gramaticalmente se trate de um plural – com o significado de “deuses”, portanto – os verbos que a acompanham normalmente têm a forma masculina singular. “Elohim”, dessa forma, é um termo genérico para designar Deus. A fonte E parece ter uma visão um pouco mais elevada da figura divina do que J – em geral, nos textos desse documento, Deus prefere interagir com a humanidade por meio de profetas ou mensagens enviadas em sonho.

<strong>Tradicional rolo de textos sagrados judaicos contendo o Pentateuco, ou Torá.</strong>
Tradicional rolo de textos sagrados judaicos contendo o Pentateuco, ou Torá. (duncan1890/Getty Images)

A preferência pelo termo “Elohim” como forma de designar Deus é um dos pontos em comum entre E e a fonte P. A principal pista de que esses textos são obra de um ou vários membros da casta sacerdotal israelita é a paixão que eles demonstram pelos detalhes dos rituais religiosos. São preocupações, no fundo, muito próximas da religião do cotidiano, mas ao mesmo tempo os textos de P também são capazes de passar uma imagem bastante abstrata e quase impessoal do Senhor. A primeira narrativa da criação do mundo, por exemplo, na qual Deus faz tudo aparecer simplesmente com sua palavra, no capítulo 1 do Gênesis, normalmente é atribuída a P.

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Já nos encontramos com a fonte D antes, quando falamos de Josias. Tudo indica, porém, que a perspectiva de D não se limita a influenciar apenas o Deuteronômio. A coleção de livros “históricos” que vem logo depois do Pentateuco – ou seja, os livros de Josué, Juízes, Samuel (partes 1 e 2 na Bíblia cristã) e Reis (também com partes 1 e 2) –, também é conhecida como História Deuteronomista. Isso não significa que o autor do Deuteronômio tenha escrito essas obras do zero; é muito provável que tenha usado uma série de materiais escritos (e orais) mais antigos para compô-las.

Mas, trabalhando como editor, o “historiador deuteronomista” foi responsável por dar o tom desses livros e, principalmente, por deixar clara a moral da história. Ou seja: os israelitas deviam colocar a fidelidade a Iahweh acima de tudo.

O resultado da combinação dessa variedade de perspectivas num único texto bíblico é um conjunto inevitavelmente complexo. O Deus do Antigo Testamento é uma entidade complicada, cheia de nuances: às vezes colérico, outras tantas misericordioso e mesmo amoroso; às vezes muito próximo dos seres humanos com quem interage, às vezes transcendente e distante.

Explicando as letras do Pentateuco

Deus

A fonte literária designada pela letra J corresponde a textos que usam preferencialmente a palavra hebraica “Yahweh” para se referir a Deus – ocorre que a forma clássica dessa hipótese é obra do erudito alemão Julius Wellhausen (1844–1918), e em alemão o J tem som de Y, como talvez você saiba, o que explica a letrinha adotada. Pelo mesmo motivo, a fonte sacerdotal é designada com o P, de Priester, ou sacerdote em alemão.

Consequências do monoteísmo

Por outro lado, a forma clássica do monoteísmo israelita simplifica absurdamente o quadro que predominava nas crenças dos demais povos antigos. Deus é a única força sobrenatural que realmente conta. É verdade que ele possui seu exército de anjos, figuras provavelmente derivadas do conselho de divindades de terceiro escalão que serviam a El no panteão cananeu, mas esses mensageiros celestiais estão totalmente subordinados ao Senhor e, em geral, nem nome próprio possuem.

O mal que existe no mundo não tem relação nenhuma com entidades divinas: ele deriva puramente das escolhas erradas do ser humano, conforme ensina a segunda narrativa da criação no Gênesis – aquela famosíssima, na qual Adão e Eva comem do fruto proibido por instigação da serpente. (Leia essa narrativa com atenção quando tiver tempo, aliás: não há indicação nenhuma de que a tal serpente seja o Diabo – ela não passa de um animal falante, originalmente.)

É justamente por isso que o Antigo Testamento coloca uma ênfase tão grande nas consequências das escolhas éticas humanas. Em última instância, para os autores da Bíblia hebraica, são elas que determinam a natureza do Cosmos.

Do nosso ponto de vista, entender o interesse do Deus único de Israel por esse tema não é muito difícil porque, afinal de contas, nós estamos mergulhados hoje numa cultura que incorporou os ideais judaicos (e cristãos) do certo e do errado. Em outras palavras, “não prestarás falso testemunho” e “não cometerás adultério” parecem regras relativamente lógicas, por mais que muita gente minta e outras tantas não resistam a arrastar a asa para a mulher do próximo.

Mas a Torá também está cheia de exigências rituais que podem nos parecer despropositadas, como a necessidade de se purificar depois de uma relação sexual, do nascimento de um bebê ou de se curar de uma doença de pele.

<strong>Adão, Eva, serpente: a narrativa do primeiro casal é a segunda versão das origens do ser humano.</strong>
Adão, Eva, serpente: a narrativa do primeiro casal é a segunda versão das origens do ser humano. (ivan-96/Getty Images)

O que essas regrinhas aparentemente arbitrárias têm a ver com a natureza soberana do Deus único? Talvez muita coisa. A análise detalhada das leis de pureza ritual da Bíblia (em geral, presentes na fonte P) sugere que elas existem para demarcar da forma mais clara possível a diferença entre o todo-poderoso e transcendente Iahweh e a natureza humana mortal. Para ser mais exato, tudo o que remete à mortalidade ou à procriação não pode entrar em contato com a esfera divina, uma vez que Deus é, por definição, imortal – aliás, eterno – e não se engaja em atos reprodutivos de nenhuma natureza.

À espera do Apocalipse

Até onde sabemos, a longa fase da dominação persa foi um período de relativa calmaria e consolidação para a comunidade dos adoradores de Iahweh. De 535 a.C., quando foram lançadas as fundações do Segundo Templo de Jerusalém, até 330 a.C., quando o Império Persa chegou ao fim depois de mais de dois séculos de hegemonia no Oriente Médio, os herdeiros do antigo reino de Judá puderam seguir seus costumes monoteístas em paz, apesar das disputas ocasionais com os moradores de Samaria, que também seguiam a Iahweh e se consideravam os legítimos herdeiros da tradição israelita.

A situação começa a mudar quando o rei macedônio Alexandre, o Grande, conquista todos os domínios que pertenciam aos monarcas persas, incluindo a antiga terra de Israel, mas também regiões em que havia uma significativa minoria judaica, como a Babilônia e o Egito. Durante muito tempo, Alexandre e seus sucessores não parecem ter tido motivos para interferir nos hábitos religiosos peculiares de seus súditos judeus.

Dois fenômenos, no entanto, acabaram intensificando o potencial de conflito entre a comunidade israelita, agora liderada pelos sumos sacerdotes de Jerusalém (a dinastia de David desaparecera como força política), e seus novos senhores de língua grega. O primeiro é o fato de que Alexandre tinha como meta não apenas implantar seu domínio político como também helenizar seu novo império, ou seja, espalhar pelo Oriente Médio a cultura grega, em todos os seus aspectos.

O exemplo mais óbvio de tal influência é o fato de que o Tanakh acabou sendo traduzido para o grego, muito provavelmente por volta do ano 200 a.C., na cidade egípcia de Alexandria, para que israelitas que não sabiam mais hebraico pudessem ter acesso às Escrituras. De repente, Iahweh também falava grego. E não apenas em tradução, porque a tradução do Antigo Testamento é apenas a ponta do iceberg: começa a surgir aí uma considerável literatura religiosa judaica escrita diretamente em grego, e as ideias teológicas de filósofos da Grécia, como Platão, passam a influenciar pensadores judeus.

O segundo fenômeno, por outro lado, é o que tem impacto mais decisivo no curto prazo. Alexandre não deixou filhos adultos que pudessem assumir seu trono, o que significa que, poucos anos depois da morte do conquistador, o gigantesco império macedônico acabou sendo fatiado, e cada um dos principais generais do rei morto abocanhou um pedaço dos despojos.

Ocorre que a Palestina se localizava bem na fronteira entre os domínios da dinastia dos Ptolomeus, senhores do Egito, e a dos selêucidas, que tinham se apossado da Síria e da Mesopotâmia. O território dominado por Jerusalém não passava, no fundo, de uma estreita faixa estratégica de terra que podia ser atravessada por grandes exércitos.

A grande pergunta que deve ter passado pela cabeça da elite judaica nesse período deve ter sido: “O que diabos a gente faz para sobreviver?”. Em meio a tanta insegurança, seria razoável que ao menos algumas facções judaicas decidissem que o jeito era aderir com mais -entusiasmo ao projeto de helenização. E parece que foi isso o que começou a acontecer, também em torno de 200 a.C.

Há até relatos de judeus que passaram a se submeter a uma cirurgia estética das mais dolorosas, que repuxava a pele do pênis de modo a disfarçar a retirada do prepúcio, característica da circuncisão judaica. O motivo: esses judeus queriam se exercitar nus em ginásios públicos, conforme a tradição grega, mas desejavam disfarçar o fato de que tinham sido circuncidados.

<strong>Alexandre, o Grande, espalhou a cultura grega pelo Oriente, o que trouxe novos dilemas.</strong>
Alexandre, o Grande, espalhou a cultura grega pelo Oriente, o que trouxe novos dilemas. (duncan1890/Getty Images)

A situação se tornou explosiva a partir de 167 a.C., quando a Judeia estava sob o domínio do monarca selêucida Antíoco 4º Epífanes. Por motivos que não estão exatamente claros – talvez para punir judeus rebeldes, talvez para consolidar o controle político e social sobre seu reino – Antíoco decidiu desencadear um processo de helenização forçada, proibindo os costumes religiosos judaicos e transformando o Templo de Jerusalém num santuário dedicado ao deus grego Zeus.

Os resultados foram desastrosos para o rei: uma rebelião liderada pela família dos Asmoneus ou Macabeus, membros da casta sacerdotal judaica, acabaria transformando a Judeia num reino independente, após décadas de lutas de guerrilha. No fim das contas, os Asmoneus conseguiram assumir tanto a função de sumo sacerdotes quanto o título de reis – os primeiros monarcas independentes da nação desde a destruição de Jerusalém pelos babilônios.

Se houve alguma sensação de triunfo pela vitória dos guerreiros rebeldes e pela nova independência política dos judeus em sua terra, ela provavelmente foi por água abaixo bastante rápido. As décadas de luta desesperada contra Antíoco e seus sucessores, bem como os desmandos da dinastia dos Asmoneus (que não se revelaram muito mais bonzinhos com a população judaica do que os monarcas de origem grega, no fim das contas), acabariam forjando novas concepções sobre a natureza do Senhor e de sua relação com o povo de Israel e com o Cosmos.

Estamos falando do nascimento da literatura apocalíptica, cujo principal expoente na Bíblia hebraica é o Livro de Daniel, escrito durante o reinado de Antíoco Epífanes, segundo a maioria dos estudiosos.

No cenário traçado por esses livros, o mundo está temporariamente dominado por potências demoníacas que se opõem a Deus e oprimem o povo de Israel, fazendo com que tiranos estrangeiros submetam os seguidores do Senhor a todo tipo de suplício – espelhando, portanto, as perseguições que aconteceram durante o reinado de Antíoco. Mas é preciso ter esperança, prega o autor de Daniel (e os autores de outros livros desse gênero): Deus está prestes a intervir.

Por meio de intermediários, como anjos poderosos e guerreiros, o Senhor desencadeará uma última grande batalha na qual os inimigos de Israel serão derrotados, os pagãos opressores terão seu justo castigo, os que morreram guardando a verdadeira fé ressuscitarão e viverão para sempre num mundo no qual o mal não existe mais.

Com o passar das décadas, a dinastia dos Asmoneus, dilacerada por disputas entre herdeiros do trono, foi tirada do poder por uma aliança entre o Império Romano e o aristocrata judeu Herodes, que se tornou rei em 37 a.C. Sim, é o mesmo Herodes que a Bíblia acusa de matar criancinhas indiscriminadamente e, embora esse crime específico provavelmente não tenha acontecido de verdade, a fama de psicopata é plenamente justificada (ele ordenou a morte de dois de seus filhos e de uma de suas esposas, entre outros atos de infâmia).

Na prática, a terra de Israel tinha virado quintal de Roma. Foi no olho desse furacão, nos últimos anos do reinado de Herodes, que nasceu um certo Jesus de Nazaré. É hora de ele entrar em cena.

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