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Saúde

O verdadeiro dono do mundo

Ele existe há 10 milhões de anos. Infecta quase todos os animais de sangue quente. Tem o poder de erradicar o medo – mesmo que isso signifique matar seu hospedeiro. E pode estar dentro de você.

Texto: Bruno Garattoni e Tiago Cordeiro | Ilustração: Pedro Hamdam | Design: Yasmin Ayumi

Édifícil imaginar como um rato se sente, mas ele compartilha conosco a mais primitiva das emoções: o medo. E não há nada que meta mais medo, na cabeça de um rato, do que a 2-feniletilamina.

Essa molécula está presente na urina dos animais carnívoros, em especial na dos felinos, e sentir o cheiro dela é um alerta de perigo iminente para qualquer roedor. Mas alguns ratos reagem a isso de um jeito estranho. Em vez de fugir, eles procuram o xixi e então ficam perto dele, como se estivessem hipnotizados. Não saem dali por nada – até que um felino apareça para devorá-los.

Isso acontece porque aquele cheiro, que normalmente aciona o hipotálamo ventromedial (a região cerebral que dispara o medo no rato), tem um efeito totalmente diferente: estimula a amígdala posterodorsal medial, que desperta a atração sexual nos roedores. E a urina de gato, até então um sinal de morte, vira sinônimo de prazer.

Uma transformação diabólica, e até meio poética. Mas obra de um dos seres mais simples e desprovidos de inteligência que existem: o protozoário Toxoplasma gondii. Um organismo unicelular que surgiu há 10 milhões de anos na América do Norte, e de lá se espalhou para todos os cantos, e muitas das espécies, do planeta. Ele é capaz de contaminar praticamente todos os animais de sangue quente. Ratos, pássaros, macacos, tigres, baleias, humanos… pense num bicho, e o T. gondii provavelmente o infecta. Talvez ele esteja, neste exato momento, dentro de você – estima-se que 30% da população mundial1 carregue o parasita, que permanece no organismo durante toda a vida (no Brasil, 60% a 70% das pessoas têm o T. gondii, dependendo da cidade avaliada2). E, como um conjunto de estudos começa a comprovar, é capaz de interferir, de forma oculta, no comportamento das pessoas.

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Fontes (1)Toxoplasmosis – A Global Threat. Correlation of Latent Toxoplasmosis with Specific Disease Burden in a Set of 88 Countries. J. Flegr e outros, 2014. (2) Toxoplasmosis snapshots: Global status of Toxoplasma gondii seroprevalence and implications for pregnancy and congenital toxoplasmosi. G. Pappas e outros, 2009.

O T. gondii precisa chegar a um gato. Para isso, controla o cérebro de um rato.
O T. gondii precisa chegar a um gato. Para isso, controla o cérebro de um rato. (Pedro Hamdam/Superinteressante)
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O sexo e a gordura

O Toxoplasma gondii foi descoberto em 1908 por  dois cientistas franceses, que o encontraram em um gundi, espécie de rato típica da África. Observando o protozoário no microscópio, constataram que ele tinha um formato semicurvo, e então o batizaram com uma junção de palavras: toxo e plasma, que significam “arco” e “forma” em grego. O gondii foi uma homenagem ao roedor.

Mas foram os felinos os primeiros a serem infectados pelo parasita, e os responsáveis por espalhá-lo pelo mundo. Hoje eles são o início e o fim do ciclo de vida do T.gondii. O processo começa no cocô de felinos infectados: ele contém “oocitos”, que são microesporos duros e resistentes contendo o parasita. Quando outros animais entram em contato com essas fezes, acabam ingerindo os esporos e são infectados. Também é possível pegar o parasita comendo carne de algum animal infectado (no Brasil, o principal vetor de infecção é a carne de porco mal cozida).

Quando o T.gondii penetra no intestino, começa a se replicar e cai na corrente sanguínea. Ele então libera proteínas que atrapalham a ação do sistema imunológico, ganhando tempo para se espalhar pelo organismo. Quando o sistema imune finalmente detecta o intruso e começa a atacá-lo, ele se transforma novamente: assume a forma de cistos, bolinhas que costumam se alojar nos músculos ou no cérebro.

Na grande maioria dos casos, o animal (ou humano) infectado não apresenta sintomas. A toxoplasmose, que é a doença causada pelo parasita, só costuma se manifestar em indivíduos com a resistência baixa, como pessoas que fizeram sessões de radioterapia ou sofrem de doenças que comprometem o sistema imunológico. Ele também pode ser transmitido para o bebê durante a gestação – e, aí, ter consequências terríveis. “No feto, o protozoário vai provocar danos neurológicos muito graves, que vão provavelmente culminar num aborto”, afirma o biólogo Bruno di Genova, da Universidade de Wisconsin. Por isso, recomenda-se que as gestantes façam exame para detectar a infecção – que é controlável com antibióticos.

Quando nada disso acontece e o protozoário passa despercebido, a pessoa fica o resto da vida carregando o parasita sem saber. (Só existe tratamento para a fase aguda da infecção, que pode durar até dois meses. Para o estágio crônico, simplesmente não há medicamentos.) Mas, para o T. gondii, a história não termina aí. Ele precisa dar um jeito de contaminar um felino – pois é só dentro desse animal que o parasita consegue se reproduzir sexualmente, ou seja, trocando código genético com outros T.gondii, e não apenas clonando a si mesmo. “Os felinos não processam uma gordura, o ácido linoleico, que acaba se acumulando no intestino. E o parasita precisa consumir essa gordura para alcançar o estágio sexual”, explica Di Genova, que é coautor de um estudo comprovando esse fenômeno3. As outras espécies digerem esse tipo de gordura, que não fica à disposição do parasita. Ele realmente precisa dos felinos.

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E é por isso que, em todos os demais hospedeiros, ele acaba se alojando nos músculos e no cérebro. Nos músculos porque, quando uma onça come um macaco, por exemplo, ela devora sua carne – e acaba ingerindo os cistos do parasita. Já o cérebro serve para
mudar o comportamento do hospedeiro, como no caso do rato, e aumentar as chances de que ele seja comido por um felino. “Isso pode ser considerado uma vantagem evolutiva para o parasita. O T. gondii vai entrar em contato com o intestino do felino e então realizar a reprodução sexuada, que permite a recombinação genética”, diz o médico João Furtado, professor da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto e autor de estudos sobre o parasita. Para os protozoários, assim como para qualquer ser vivo, é bom ter diversidade genética, pois aumenta a resistência da espécie.

Mas e na mente humana, o que o protozoário faz, afinal? As pessoas gostam de gatos porque estão infectadas pelo T. gondii? Não: a porcentagem de indivíduos contaminados é similar entre quem tem e quem não tem gato. Mas há indícios de que o parasita pode ter efeitos insidiosos, e surpreendentes, sobre o seu cérebro.

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(3) Intestinal delta-6-desaturase activity determines host range for Toxoplasma sexual reproduction. B M Di Genova e outros, 2019.

Clique na imagem para ampliar.
Clique na imagem para ampliar. (Pedro Hamdam/Superinteressante)
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A primeira vez

23 de maio de 1938 foi uma segunda-feira tranquila para os obstetras do Babies Hospital, em Nova York, que fizeram uma série de partos. Num deles, cesariana, nasceu uma garotinha aparentemente normal. Mas, aos três dias de vida, ela começou a ter convulsões – e morreu um mês depois. Os médicos fizeram uma autópsia e descobriram algo aterrador: a pobre criança tinha T.gondii no cérebro. Foi a primeira vez em que o parasita foi encontrado em seres humanos. Mas ainda demoraria para a medicina entender como o parasita acabava dentro do corpo das pessoas. Só em 1970, quando os oocistos do toxoplasma foram encontrados em fezes de gatos, é que foi possível entender o ciclo completo do protozoário.

Ao longo das últimas três décadas, dezenas de estudos identificaram correlações entre casos de esquizofrenia e a presença do T. gondii. Via de regra, entre os portadores dessa doença mental, a proporção de infectados pelo protozoário é maior do que a média da região onde eles vivem. E vice-versa: entre as pessoas que têm o parasita, o percentual de esquizofrênicos é maior. Isso foi comprovado de forma convincente em 2008, quando um grupo de pesquisadores analisou 1.261 militares americanos que haviam sido diagnosticados com esquizofrenia4.

O estudo realizou exames clínicos e laboratoriais e pesquisou o histórico prévio dos envolvidos. Concluiu que a presença do toxoplasma era, sim, determinante para o desenvolvimento de esquizofrenia. “Há um certo consenso de que o protozoário interfere no sistema nervoso de pessoas com propensão a desenvolver doenças mentais”, diz João Furtado, da USP. “Antes desse estudo, os pesquisadores se perguntavam o que vinha primeiro, se a esquizofrenia ou o parasita. Com essa pesquisa, ficou claro que a toxoplasmose provocou a doença.”

Também há indícios de que o protozoário possa estar relacionado a casos de suicídio. Em 2018, um estudo feito na Coreia do Sul comparou 155 pacientes que tentaram cometer suicídio a 135 pessoas sem histórico do tipo. Encontraram 21 infectados entre os suicidas, contra 8 entre os integrantes do grupo de controle5. Ou seja: entre quem tentou tirar a própria vida, a incidência do T.gondii era quase três vezes maior. Em outro estudo6, realizado por cientistas da Universidade de Maryland, nos EUA, cientistas analisaram 218 pessoas com depressão ou transtorno bipolar – 99 das quais já haviam tentado tirar a própria vida. Nesse subgrupo, 51% dos indivíduos haviam sido infectados (contra 37% de quem tinha doença mental, mas não tentou suicídio, e 40% das pessoas do grupo de controle, sem nenhum transtorno psiquiátrico). A conclusão disso é que o parasita não necessariamente leva à depressão – mas, nos casos em que ela já está presente, aumenta o risco de suicídio.

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Isso pode estar relacionado à mesma alteração de comportamento observada em ratos: a supressão do medo e a propensão a assumir comportamentos mais arriscados. Entre as pessoas que já se envolveram em acidentes de trânsito, por exemplo, a prevalência do T.gondii pode ser muito maior do que no resto da sociedade. O primeiro sinal disso surgiu em 2005, num estudo feito por cientistas da Turquia7, que analisaram dois grupos com 185 pessoas cada: o primeiro só com indivíduos que haviam se envolvido em acidentes de trânsito, e o outro coletado na população em geral. 32,9% das pessoas que tinham batido o carro carregavam o parasita no organismo – contra apenas 8,6% das demais. Em 2016, pesquisadores da Universidade de Chicago analisaram a relação entre o Transtorno Explosivo Intermitente, uma síndrome que faz a pessoa ficar agressiva sem motivo, e o toxoplasma8. 21,8% das pessoas com essa condição tinham o parasita, contra 9,1% das demais.    

Existe, até, um estudo relacionando o protozoário a um comportamento de risco no mundo dos negócios: o empreendedorismo. Cientistas da Universidade do Colorado testaram a saliva de 1.293 estudantes9, recrutados em dois cursos bem diferentes: biologia e negócios. Entre os infectados, havia 40% mais alunos de negócios do que entre os não infectados. E entre os estudantes de negócios que carregavam o parasita, a taxa de empreendedorismo era 80% maior: quase o dobro deles, se comparados com quem nunca pegou o protozoário, já havia tentado começar algum negócio próprio.

Isso é só uma correlação estatística, claro. Há inúmeros outros fatores envolvidos na escolha de uma profissão – bem como nos acidentes de trânsito, transtornos mentais e outras situações que envolvem a presença do T.gondii. Não dá para dizer que sejamos, como ratos, controlados por ele. Influenciados, talvez. Mas o parasita é tão difundido, e passa batido com tanta frequência, que dificilmente descobriremos todos os seus efeitos sobre a mente humana. Inclusive porque, para ele, o ideal seria não fazer nada. “O toxoplasma comprova que o parasita mais eficaz é aquele que infecta sem provocar doenças, porque consegue se multiplicar sem colocar em risco a vida do hospedeiro”, afirma Di Genova.

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Discreto e manipulador, esse micróbio em forma de arco tem tudo para continuar se multiplicando dentro de células animais – de quase todas as formas, espécies e lugares do planeta.

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Fontes

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(4) Selected Infectious Agents and Risk of Schizophrenia Among U.S. Military Personnel, D. Niebuhr e outros, 2008.

(5) The Association between Suicide Attempts and Toxoplasma gondii Infection. J Bak e outros, fevereiro de 2018.(6) Toxoplasma gondii Antibody Titers and History of Suicide Attempts in Patients With Recurrent Mood Disorders. T Arling e outros, 2009. (7) Is Toxoplasma gondii a potential risk for traffic accidents in Turkey? K Yereli e outros, 2006. (8) Toxoplasma gondii infection: relationship with aggression in psychiatric subjects. E. Coccaro e outros, 2016 (9) Risky business: linking Toxoplasma gondii infection and entrepreneurship behaviours across individuals and countries. S Johnson e outros, 2018.

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