A primeira vez
23 de maio de 1938 foi uma segunda-feira tranquila para os obstetras do Babies Hospital, em Nova York, que fizeram uma série de partos. Num deles, cesariana, nasceu uma garotinha aparentemente normal. Mas, aos três dias de vida, ela começou a ter convulsões – e morreu um mês depois. Os médicos fizeram uma autópsia e descobriram algo aterrador: a pobre criança tinha T.gondii no cérebro. Foi a primeira vez em que o parasita foi encontrado em seres humanos. Mas ainda demoraria para a medicina entender como o parasita acabava dentro do corpo das pessoas. Só em 1970, quando os oocistos do toxoplasma foram encontrados em fezes de gatos, é que foi possível entender o ciclo completo do protozoário.
Ao longo das últimas três décadas, dezenas de estudos identificaram correlações entre casos de esquizofrenia e a presença do T. gondii. Via de regra, entre os portadores dessa doença mental, a proporção de infectados pelo protozoário é maior do que a média da região onde eles vivem. E vice-versa: entre as pessoas que têm o parasita, o percentual de esquizofrênicos é maior. Isso foi comprovado de forma convincente em 2008, quando um grupo de pesquisadores analisou 1.261 militares americanos que haviam sido diagnosticados com esquizofrenia4.
O estudo realizou exames clínicos e laboratoriais e pesquisou o histórico prévio dos envolvidos. Concluiu que a presença do toxoplasma era, sim, determinante para o desenvolvimento de esquizofrenia. “Há um certo consenso de que o protozoário interfere no sistema nervoso de pessoas com propensão a desenvolver doenças mentais”, diz João Furtado, da USP. “Antes desse estudo, os pesquisadores se perguntavam o que vinha primeiro, se a esquizofrenia ou o parasita. Com essa pesquisa, ficou claro que a toxoplasmose provocou a doença.”
Também há indícios de que o protozoário possa estar relacionado a casos de suicídio. Em 2018, um estudo feito na Coreia do Sul comparou 155 pacientes que tentaram cometer suicídio a 135 pessoas sem histórico do tipo. Encontraram 21 infectados entre os suicidas, contra 8 entre os integrantes do grupo de controle5. Ou seja: entre quem tentou tirar a própria vida, a incidência do T.gondii era quase três vezes maior. Em outro estudo6, realizado por cientistas da Universidade de Maryland, nos EUA, cientistas analisaram 218 pessoas com depressão ou transtorno bipolar – 99 das quais já haviam tentado tirar a própria vida. Nesse subgrupo, 51% dos indivíduos haviam sido infectados (contra 37% de quem tinha doença mental, mas não tentou suicídio, e 40% das pessoas do grupo de controle, sem nenhum transtorno psiquiátrico). A conclusão disso é que o parasita não necessariamente leva à depressão – mas, nos casos em que ela já está presente, aumenta o risco de suicídio.
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Isso pode estar relacionado à mesma alteração de comportamento observada em ratos: a supressão do medo e a propensão a assumir comportamentos mais arriscados. Entre as pessoas que já se envolveram em acidentes de trânsito, por exemplo, a prevalência do T.gondii pode ser muito maior do que no resto da sociedade. O primeiro sinal disso surgiu em 2005, num estudo feito por cientistas da Turquia7, que analisaram dois grupos com 185 pessoas cada: o primeiro só com indivíduos que haviam se envolvido em acidentes de trânsito, e o outro coletado na população em geral. 32,9% das pessoas que tinham batido o carro carregavam o parasita no organismo – contra apenas 8,6% das demais. Em 2016, pesquisadores da Universidade de Chicago analisaram a relação entre o Transtorno Explosivo Intermitente, uma síndrome que faz a pessoa ficar agressiva sem motivo, e o toxoplasma8. 21,8% das pessoas com essa condição tinham o parasita, contra 9,1% das demais.
Existe, até, um estudo relacionando o protozoário a um comportamento de risco no mundo dos negócios: o empreendedorismo. Cientistas da Universidade do Colorado testaram a saliva de 1.293 estudantes9, recrutados em dois cursos bem diferentes: biologia e negócios. Entre os infectados, havia 40% mais alunos de negócios do que entre os não infectados. E entre os estudantes de negócios que carregavam o parasita, a taxa de empreendedorismo era 80% maior: quase o dobro deles, se comparados com quem nunca pegou o protozoário, já havia tentado começar algum negócio próprio.
Isso é só uma correlação estatística, claro. Há inúmeros outros fatores envolvidos na escolha de uma profissão – bem como nos acidentes de trânsito, transtornos mentais e outras situações que envolvem a presença do T.gondii. Não dá para dizer que sejamos, como ratos, controlados por ele. Influenciados, talvez. Mas o parasita é tão difundido, e passa batido com tanta frequência, que dificilmente descobriremos todos os seus efeitos sobre a mente humana. Inclusive porque, para ele, o ideal seria não fazer nada. “O toxoplasma comprova que o parasita mais eficaz é aquele que infecta sem provocar doenças, porque consegue se multiplicar sem colocar em risco a vida do hospedeiro”, afirma Di Genova.
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Discreto e manipulador, esse micróbio em forma de arco tem tudo para continuar se multiplicando dentro de células animais – de quase todas as formas, espécies e lugares do planeta.
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Fontes
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(4) Selected Infectious Agents and Risk of Schizophrenia Among U.S. Military Personnel, D. Niebuhr e outros, 2008.
(5) The Association between Suicide Attempts and Toxoplasma gondii Infection. J Bak e outros, fevereiro de 2018.(6) Toxoplasma gondii Antibody Titers and History of Suicide Attempts in Patients With Recurrent Mood Disorders. T Arling e outros, 2009. (7) Is Toxoplasma gondii a potential risk for traffic accidents in Turkey? K Yereli e outros, 2006. (8) Toxoplasma gondii infection: relationship with aggression in psychiatric subjects. E. Coccaro e outros, 2016 (9) Risky business: linking Toxoplasma gondii infection and entrepreneurship behaviours across individuals and countries. S Johnson e outros, 2018.