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Apocalipse bíblico: fúria divina sobre a terra

Terremotos, fogo do céu, pragas, fome e cenas apavorantes na hora final

Por Evanildo da Silveira
Atualizado em 13 mar 2020, 14h40 - Publicado em 26 Maio 2012, 22h00
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  • “Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação, e também no Reino e na constância em Jesus, encontrava-me na ilha de Patmos, por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus. No dia do Senhor, entrei em êxtase, no Espírito, e ouvi atrás de mim uma voz forte, como de trombeta, a qual dizia: ‘O que vês, escreve-o num livro e envia-o às sete igrejas’.”

    Assim começa um dos relatos mais fantásticos e terríveis da literatura universal: o Apocalipse, o último livro da Bíblia, escrito provavelmente por João, um dos quatro evangelistas – os outros são Mateus, Marcos e Lucas -, por volta de 95 d.C., na pequena ilha grega de Patmos, no mar Egeu.

    As visões descritas pelo profeta são aterradoras. Um filme de terror tendo como tela de projeção o céu. Há personagens assustadores, como quatro cavaleiros espalhando fome, guerras e peste. Um deles, esverdeado, chamado “a Morte”, vinha acompanhado da “morada dos mortos”. E anjos, muitos anjos, alguns tocando trombetas, anunciando castigos e catástrofes. E trovões, clamores, relâmpagos e terremotos. E cenas apavorantes: “E caíram sobre a terra granizo e fogo misturados com sangue”; “uma grande montanha ardendo em chamas foi lançada no mar. A terça parte do mar transformou-se em sangue”; “e caiu do céu uma grande estrela, ardendo como uma tocha”.

    A Terra será atacada por pragas terríveis. “Espalharam-se gafanhotos sobre a terra e receberam poder igual ao dos escorpiões”, escreveu. “Foi-lhes dito que não danificassem a vegetação da terra, nem as ervas nem as árvores, mas somente as pessoas que não levassem na fronte a marca do selo de Deus. Não lhes foi permitido matá-las, mas sim atormentá-las durante cinco meses. E a dor que causavam era semelhante à dor da picada do escorpião quando morde alguém.” Diante disso, não é à toa que João tenha previsto que “naqueles dias, as pessoas vão procurar a morte e não a encontrarão. Vão desejar morrer, mas a morte fugirá delas!”

    O Apocalipse de João prevê a luta final entre o Bem e o Mal, entre Deus e o diabo. As forças malignas serão formadas por um exército gigantesco, comandado por um anticristo, o demônio-mor em pessoa. Elas serão derrotadas por Jesus, que reinará por mil anos, com Satã acorrentado por todo esse período. O diabo, porém, não é fácil de ser batido e conseguirá se libertar e voltar para a batalha final, que acontecerá num lugar chamado Armagedom. Muitos especialistas identificam esse local com Megiddo, hoje no território de Israel. Mais uma vez Jesus vencerá as forças das trevas. Depois da batalha, virá o Juízo Final, que jogará para sempre os pecadores no inferno e os bons e justos no paraíso.

    Diante das cenas apavorantes descritas por João, não é de estranhar que muita gente acredite ainda hoje que ele esteja falando do fim do mundo. Esse não é o entendimento de analistas do texto e de teólogos e cristãos em geral. Eles lembram que a palavra “apocalipse”, do grego, significa “revelação”. É o desvendamento divino de coisas que até então permaneciam secretas a um profeta escolhido por Deus.

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    Por extensão, passou-se a chamar de “apocalipse” os relatos escritos de hecatombes. “As revelações do texto não são ‘predições’ do futuro”, alerta o teólogo Cesar Kuzma, coordenador e professor do Curso de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). “O Deus bíblico não faz predições, ele faz promessas.”

    Portanto, de acordo com Kuzma, o texto do Apocalipse de João é uma maneira literária, própria da época, de narrar os acontecimentos que marcavam a vida dos primeiros cristãos, mostrando a eles que a resposta final está em Deus.

    Não importavam as tribulações e as perseguições, Jesus Cristo era mais forte e seria ele quem daria a última palavra. “Deus não vem destruir o mundo, mas salvá-lo”, diz Kuzma. “O julgamento de Deus está em fazer justiça a quem está caído e recuperar os agentes de destruição, ou seja, é um julgamento de salvação, não de condenação. O Deus cristão não condena ninguém, é um Deus da acolhida, que ama a todos e ‘faz novas todas as coisas’.”

    O padre de Caxias do Sul (RS) Leomar Antonio Brustolin, doutor em Teologia e coordenador do programa de pós-graduação em Teologia da PUC-RS, de Porto Alegre, reza pelo mesmo catecismo. “É um livro de esperança e não de temor”, ensina. “A linguagem e os símbolos são, propositalmente, carregados de segredos que permitem aos cristãos entender quem é o senhor de tudo. Ao mesmo tempo, confunde os outros leitores que acabam se detendo no simbolismo e nas profecias do fim.”

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    Segundo ele, o estilo do livro pode ser estranho para a cultura ocidental, mas é bem compreensivel na mentalidade semita do período em que foi escrito. “É uma literatura própria das épocas de crise e de perseguição, em que se procura ‘revelar’ os caminhos de Deus sobre o futuro, para consolar e encorajar os justos perseguidos, dando-lhes a certeza da vitória final”, explica.

    O padre Brustolin está se referindo ao contexto em que o Apocalipse de João foi escrito. Foi no período da perseguição que atingiu as igrejas da Ásia, nos tempos do imperador romano Titus Flavius Domitianus, conhecido em português como Domiciano, que reinou de 81 a 96 da nossa era.

    “O livro pretende responder à questão: quem manda no mundo? Os tiranos, os senhores da Terra, ou o Senhor do Céu?”, diz Brustolin. “Esse paralelismo entre o céu e a Terra assegura aos crentes que Deus os acompanha a partir do céu, e a História segue o seu curso na Terra sob o controle Dele e não dos poderes maus.”

    Brustolin lembra que João vive na terra, mas vê o que se passa no céu. “Ele transmite aos seus irmãos sofredores a certeza de que Jesus está com eles e a sua vitória será em breve”, explica. “O simbolismo, por vezes irracional, de que o autor se serve para transmitir essa esperança aos perseguidos, assegura aos cristãos que o reino de Deus ultrapassa a História que eles estão vivendo, e ao mesmo tempo é uma linguagem secreta para os perseguidores.”

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    Para além do cristianismo, a visão de um mundo finito faz parte da psique humana. O homem busca dar sentido ao mundo e aos fenômenos que o cercam. Dessa forma, ao olhar para o caos do céu noturno, dá às estrelas formas que têm analogia com sinais encontrados na Terra. Em suma, a mente humana luta uma batalha permanente para dar sentido às coisas. A imagem de um fim do mundo ajuda a explicar o que estamos fazendo aqui.

    Ainda segundo Brustolin, a interpretação dos sinais do futuro advento do Cristo deu margem à imaginação de muitos grupos religiosos, inclusive católicos, que encontram por todos os lados indicações da iminência do fim do mundo. Muitas acreditam que as catástrofes naturais, epidemias e até a crise de esperança da sociedade moderna são sinais antecipados do apocalipse.

    “O dia do Juízo Final, a vinda de Cristo e a consumação do tempo e do espaço são alguns aspectos da fé cristã que, não raras vezes, causa certo desconcerto, afetando o sentido da esperança dos cristãos”, explica o teólogo. “Isso ocorre porque a fantasia apocalíptica desenvolveu a ideia de que a vinda de Cristo será marcada pela ira, pela vingança e por sinais catastróficos.”

    Para o coordenador do curso de Filosofia da PUC-PR, Jelson Oliveira, esse medo do fim do mundo tem a ver com a finitude humana, algo com o qual homem convive diariamente (a morte), mas que ainda o assombra como indivíduo e como espécie. O psicólogo britânico Bruce Hood afirma que imaginar um final coletivo, de forma a colocar ordem no mundo, é algo inato ao ser humano.

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    “O fim do mundo sempre foi uma ameaça usada especialmente pelas religiões para impor parâmetros de comportamento aos indivíduos”, diz Oliveira. “A destruição de cidades (Sodoma e Gomorra são um bom exemplo) é anunciada como uma vingança pelos pecados da população. Ou seja, o mote do fim do mundo aparece como medida moral.”

    É um sentimento, um receio que se fortalece em momentos de mudança de calendário, mais precisamente em datas redondas, como o fim dos milênios. “Os historiadores falam da mudança do ano 1000, vivemos recentemente a mudança do ano 2000”, explica Oliveira.

    “Trata-se, no geral, de uma ‘morte simbólica’ ou do ‘fim de um mundo’, ou seja, como parte de um calendário (que aliás, em todo caso, é uma mera conjectura humana) em que se vive a chance de reavaliar o modo de vida e de civilização que está em vigor. Há, portanto, um lado positivo nessa questão: o calendário (como medida artificial de contagem do tempo) dá a chance ao homem de reavaliar a sua posição no reino da vida – tanto como indivíduo quanto como espécie.”

    O próprio Apocalipse de João, apesar de todo o sofrimento que prevê para a parte pecadora não arrependida da humanidade, deixa esperanças no final. O homem, enfim, viverá em comunhão com Deus e todas as dores terão acabado. O ciclo se fecha. “Vi então um novo céu e uma nova terra”, escreve o profeta.

    “Pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, descendo do céu, de junto de Deus, vestida como noiva enfeitada para o seu esposo. Então, ouvi uma voz forte que saía do trono e dizia: ‘Esta é a morada de Deus-com-os-homens. Ele vai morar junto deles. Eles serão o seu povo, e o próprio Deus-com-eles será seu Deus. Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos. A morte não existirá mais, e não haverá mais luto, nem grito, nem dor, porque as coisas anteriores passaram.”

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