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Armas de diversão em massa

Os videogames se tornaram complexos e realistas a ponto de invadir o mundo real. Das LAN houses aos continentes virtuais, entenda esse novo mundo - e que tipo de ser humano está emergindo dele.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h26 - Publicado em 31 Maio 2003, 22h00
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  • Rafael Kenski / Gabriela Aguerre

    Poucos lugares têm cenas tão diversificadas quanto as telas de videogame. Uma garota briga com o seu namorado e, arrasada, resolve sair para beber. Um lenhador consegue comprar uma casa em um pequeno vilarejo. Soldados treinados durante meses marcham para invadir um território. São apenas jogos, mas isso hoje quer dizer pouca coisa. O fato de terem acontecido em computadores ou em consoles não torna as cenas menos reais. Ao menos as pessoas envolvidas sentiram todas as conseqüências: a compra da casa precisou de dinheiro ganho em horas de trabalho, dezenas de pessoas treinaram durante meses para invadir o território e até a briga com o namorado teve um forte impacto emocional. Os videogames estão derrubando a fronteira que separa a brincadeira da realidade.

    Os jogos há muito tempo deixaram de ser coisa de garotos trancados em casa. Os viciados em Atari e em fliperamas durante os anos 80 cresceram mas não abandonaram o hábito. Segundo a Associação do Software Digital Interativo (IDSA), que reúne os principais produtores de jogos eletrônicos dos Estados Unidos, 70% das pessoas que se aventuram hoje nos joysticks têm mais de 18 anos e, diferentemente do que muitos imaginam, 40% são mulheres. O mercado de videogames movimenta hoje 9,4 bilhões de dólares, mais do que a receita das bilheterias de cinema. Tanto dinheiro transformou os consoles de jogo em máquinas sofisticadíssimas. Para se ter uma idéia, o Centro Nacional de Aplicações em Supercomputadores (NCSA) dos Estados Unidos juntou 70 aparelhos Playstation 2 e teve como resultado um processador com uma capacidade comparável à alguns dos maiores computadores do mundo.

    Para os jogadores, o avanço tecnológico significou uma enorme evolução sobre os jogos de algumas décadas atrás. Os games hoje são bastante complexos, capazes de simular muitos aspectos da realidade. Os dribles e manobras dos atuais jogos de esporte, por exemplo, são feitos por atletas profissionais, filmados e depois transferidos para o videogame. Outra tendência é criar uma cidade com infinitas possibilidades e deixar o jogador fazer nela o que quiser. Assim, em Grand Theft Auto: Vice City, o quinto game mais vendido do ano, é possível ficar dias passeando pelas ruas sem cumprir missão nenhuma, apenas interagindo com personagens e descobrindo novos lugares.

    Os jogos também se tornaram mais sociáveis. The Sims, o game mais vendido da história, simula uma vida comum em que o jogador trabalha, conversa com amigos e tenta se divertir. A internet também contribuiu para tirar o videogame da solidão. Ela permite que os jogadores disputem partidas entre si, habitem o mesmo espaço virtual, combinem estratégias e até modifiquem softwares. Cenários, fases, sistemas de inteligência artificial e outros ajustes são feitos pelos jogadores e disponibilizados na rede. O objetivo não é só ter mais diversão. Muitas vezes, é como se eles estivessem se mudando para outro mundo.

    Virtualidade real

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    Com exceção do ar rarefeito e do tremor na cabine, tudo se passa como em um vôo real. O piloto pára em frente ao computador, liga o jogo Flight Simulator, recebe uma escala de vôo (de uma pessoa real), contata pela internet o controlador da torre de comando (outra pessoa real), checa os instrumentos e digita as mesmas freqüências de rádio que as aeronaves de verdade usam para achar o caminho. As tempestades são iguais às que ele encontraria se estivesse voando naquele momento – o programa entra em contato com um site que recebe, de hora em hora, informações meteorológicas dos aeroportos de todo o mundo. No fim do vôo, é preciso pedir autorização novamente para a torre, esperar que outros jogadores conectados à internet pousem e enviar relatórios à companhia aérea informando o tempo gasto, o combustível consumido e o número de passageiros transportado.

    “A intenção é deixar a simulação a mais realista possível”, diz o gerente de redes de computador André Righetto, coordenador da VBA, a maior companhia aérea virtual do Brasil, com mais de 2000 pilotos cadastrados. Cabe a André garantir o realismo da simulação: ele emite o plano de vôo, recebe os relatórios e promove os pilotos de acordo com a experiência no joystick. Também é ele quem coordena a localização e o estado dos 57 aviões da companhia – apesar de o jogo permitir um número infinito de máquinas, o objetivo é personalizar as aeronaves e controlá-las como se fossem de verdade. “Não faço rotas inverossímeis. Para que vou colocar um 747 para voar até Manaus se o número de passageiros não justifica um avião tão grande?”, diz André. Ele também cuida da manutenção das máquinas – depois de uma longa explicação sobre a rotina de check-ups dos aviões, ele abre o jogo e diz que os reparos virtuais, na verdade, consistem apenas em não usar o avião durante um tempo.

    Pode parecer obsessão, mas é apenas uma demonstração do grau de realismo que a internet trouxe aos jogos. O que antes eram jogadores lutando contra o computador agora se transformou em mundos tão impressionantes quanto este em que você lê esta revista. De acordo com o programa, as pessoas jogam futebol, organizam festas ou montam enormes comunidades com colegas de qualquer lugar do mundo.

    Um dos estilos que mais sofreu esse tipo de mudança foram os RPGs (sigla em inglês para “jogos de interpretação”), em que os participantes assumem um personagem e tentam melhorá-lo. Uma vez online, esses jogos ganharam milhares de habitantes e deram origem a territórios tão gigantescos que um jogador precisaria de dias para atravessá-lo. O mais populoso deles, Everquest, um mundo no estilo medieval, possui ao menos 90 mil pessoas ligadas em qualquer hora do dia. O principal objetivo dos personagens é trabalhar para comprar mais equipamentos ou treinar suas habilidades lutando contra monstros . O jogo é extremamente viciante: a média de tempo gasto nele pelos usuários é de 23 horas por semana. Na maior parte das vezes, eles ficam simplesmente conversando, planejando ações em conjunto ou comercializando seus itens. A economia em Norrath (o reino onde se passa o jogo) é tão intensa que já invadiu o mundo real.

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    Sites de leilão na internet vendem personagens, castelos, armaduras e outras propriedades virtuais por dinheiro bastante verdadeiro. Alguns itens podem chegar a valer mais de 5 mil dólares mesmo que, em última análise, não passem de minúsculos arquivos de computador. “Alguns jogadores consideram o tempo gasto no videogame como emprego – é um trabalho, não um jogo”, afirma Edward Castronova, da Universidade de Fullerton, Estados Unidos, um pioneiro nas pesquisas da economia virtual. Analisando o comércio em dólar dos bens do jogo, ele calculou que Norrath é a 77ª nação mais rica do mundo, com um produto interno bruto de 135 milhões de dólares e uma renda per capita quase igual à da Rússia. Cada morador de lá ganha em média 3,42 dólares por hora de trabalho, ou melhor, de jogo. “Cerca de 20% dos jogadores consideram Norrath sua residência – eles apenas viajam para a Terra e voltam. Em termos econômicos, é bem viável que eles façam isso mesmo”, diz Castronova.

    Ou seja, para alguns, o jogo é um estilo de vida: em Norrath eles trabalham, encontram amigos, se apaixonam e se casam. “Nos jogos online, as pessoas entram em contato com mais gente do que no dia-a-dia. Isso traz recompensas emocionais e sociais e forma a base para relacionamentos gratificantes”, afirma o teórico da comunicação Henry Jenkins, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Estados Unidos. A dinâmica social dos videogames faz eles ainda mais viciantes. “Quanto mais você joga, mais amigos você consegue, mais a sua vida social se torna online e mais pressão você sente para voltar ao jogo”, afirma o psicólogo Simon Egenfeldt-Nielsen, da Universidade IT, em Copenhague, Dinamarca, criador do site de discussões teóricas sobre videogames Game-research.com. Além disso, jogar contra um grupo enorme de pessoas é muito mais desafiador do que enfrentar um programa de computador.

    Os videogames foram o campo onde ocorreram os maiores avanços em termos de inteligência artificial – a ponto de os personagens agirem em grupo, adotarem estratégias inesperadas e evoluírem de acordo com a reação do jogador – mas ainda há muito espaço para melhorar. “Há sempre um ponto em que a pessoa derrota o computador no nível mais difícil e se cansa do jogo. Nos jogos online, sempre há um oponente que é melhor que você”, diz Nielsen.

    Talvez essa seja uma explicação para o sucesso das LAN houses, casas que oferecem o serviço de computadores interligados em rede para que dezenas de pessoas participem do mesmo jogo. Em cerca de três anos, o Brasil ganhou mais de 2 mil dessas lojas. Vários jogadores se reúnem em clãs para aumentar o entrosamento e ter mais chances de vencer os jogos de ação em primeira pessoa que praticamente dominam esses espaços. Outra modalidade desse mesmo tipo de diversão são as LAN parties – festas em que o principal atrativo são jogos em rede com centenas de pessoas. As maiores, realizadas na Noruega e na Suécia, reúnem em grandes ginásios mais de 5 mil pessoas, cada uma com seu computador, disputando campeonatos e batalhas durante dias.

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    O berço das LAN houses é a Coréia do Sul, um país que vive a febre dos jogos online. Starcraft – jogo de estratégia em que várias raças disputam o controle do Universo – é o título de maior sucesso na região. Ele possui mais de 5 milhões de adeptos (quase 1 em cada 9 habitantes do país) e as competições do jogo são transmitidas o tempo todo em três canais de televisão. As 26 mil LAN houses do país são tidas como os lugares sociais por excelência: lá as pessoas se reúnem após o trabalho, conversam pela internet e até marcam encontros (existem poltronas com dois computadores para que casais joguem juntos). As LAN houses também são o local em que os coreanos se reúnem para as batalhas de Lineage, jogo em que exércitos se enfrentam para conquistar um território. Os ataques são feitos com enorme disciplina: os jogadores marcham em filas, atacam em ondas e possuem uma coordenação de dar inveja às forças armadas de muitos países.

    Também é nas LAN houses que eles recebem as conseqüências do ataque: existem vários relatos de jogadores que foram vítimas de violência por matarem personagens online. Quase todas as profissões da vida real têm um similar eletrônico, dos criminosos às prostitutas, que vendem seu corpo virtual em troca de dinheiro virtual. A questão é que, em um país pequeno em que quase todos jogam, ficar longe dos games é praticamente impossível.

    A vida do jogo

    A empolgação com passatempos não é recente. Em 1920, foram encontrados no Iraque tabuleiros, peças e dados com 2 600 anos de idade. Jogos como o xadrez, criado no século 6, sobrevivem até hoje. “Os seres humanos são feitos para gostar de desafios que não sejam tão fáceis a ponto de perder a graça nem tão difíceis que se tornem frustrantes”, afirma o psicólogo Dietrich Dörner, da Universidade de Bamberg, na Alemanha. Os videogames conseguem preencher essa disposição inata de forma eficiente graças a algumas características: eles possuem objetivos claros, vários modos de atingir o sucesso e feedback rápido, ou seja, o jogador recebe uma conseqüência imediata após cada ação. O resultado é uma das atividades mais envolventes que a humanidade já inventou.

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    O poder de imersão dos videogames e a seqüência constante de desafios são tão fortes que podem levar ao que os psicólogos chamam de flow (“fluxo”, em inglês), ou estado de experiência máxima. É uma sensação comum a esportistas de alta performance, monges em meditação e músicos experientes em que se perde o sentido de tempo e de espaço e em que o limite entre a pessoa e a atividade desaparece, como se ela estivesse em piloto automático. “Isso pode explicar por que os videogames são um meio tão forte, capaz de fazer as pessoas jogarem por horas e até dias“, diz Egenfeldt-Nielsen. Os desenvolvedores de software sabem disso e se esforçam para aumentar o caráter viciante dos jogos. Uma estratégia é dar a eles o máximo de realismo e a sensação de que aquela realidade existe de fato. Outra é acrescentar elementos irreais como manobras fantásticas, carros indestrutíveis e rampas perfeitas para se saltar. “Os exageros aperfeiçoam o mundo e o tornam ainda mais excitante”, afirma Henry Jenkins.

    Há, no entanto, o risco de se passar da conta e, de fato, viciar. Um dos casos mais famosos é o de um homem de 24 anos em Seul, na Coréia, que faleceu ao ficar na frente do computador por 86 horas seguidas, sem descanso nem refeições decentes. Há muita discussão a respeito da responsabilidade do jogo em mortes como essa, mas o fato é que é mais fácil deixar de fumar do que abandonar alguns games. “O vício só existe quando interfere em outras esferas da vida como a família, os amigos ou o trabalho.O tempo certo de jogo varia de acordo com a pessoa”, diz o psicólogo John Suler, da Universidade de Rider, em Nova Jersey, Estados Unidos, especializado em comportamento online.

    Por outro lado, os videogames podem mudar as pessoas para melhor. Em um estudo publicado no mês passado na revista Nature, pesquisadores da Universidade de Rochester, Estados Unidos, mostraram que jogos de ação em primeira pessoa são capazes de melhorar a percepção visual. As experiências mostraram que o videogame faz os jogadores reagirem a objetos rápidos com mais eficiência e conseguirem acompanhar um maior número de elementos visuais ao mesmo tempo.

    Os videogames também podem dar ao jogador um raciocínio mais complexo. Uma das grandes dificuldades dos urbanistas e administradores públicos é fazer a população entender que a prefeitura não pode resolver todos os problemas ao mesmo tempo. Por exemplo, nem sempre se tem dinheiro para melhorar a saúde e a educação simultaneamente. Analisar a opinião pública quanto a essas metas conflitantes é muito difícil, mas o município de Vancouver, no Canadá, achou uma saída: criou uma versão de Sim City (jogo em que o objetivo é construir e administrar um município) com o mesmo desenho dos bairros da região e propôs que os moradores planejassem a cidade para os próximos 40 anos. O projeto trouxe idéias inovadoras para a cidade, indicou as preferências dos cidadãos e mostrou a eles a dificuldade de achar algumas soluções.

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    Diversas instituições já tentam tirar proveito do lado educativo dos games: o Exército americano monta combates virtuais para treinar soldados, técnicos de computador têm jogos que os ajudam a aprender linguagens de programação e companhias aéreas usam simuladores para aperfeiçoar seus pilotos. Nem sempre a estratégia dá certo. Na recente guerra no Iraque, alguns soldados disseram ficar surpresos ao encontrar inimigos bastante diferentes dos que eles tinham enfrentado no videogame e, muitas vezes, apenas continuavam a fazer aquilo para que haviam sido treinados, como se tentassem forçar a realidade a se encaixar nas simulações que haviam jogado.

    “Ainda precisamos pesquisar mais até saber se pessoas que jogam videogames perdem a capacidade de distinção entre a fantasia e a realidade”, afirma o psicólogo John Suler. Qualquer que seja a conclusão dos pesquisadores, a tendência é que os videogames absorvam cada vez mais os objetos do dia-a-dia e que, por conseqüência, muitos aspectos da nossa vida se transfiram para ele. Existem projetos de jogos em que lojas virtuais venderiam produtos reais e de cidades online idênticas às do mundo verdadeiro que ofereceriam serviços e organizariam muitos dos dados que hoje estão dispersos nas redes. “Os videogames são os mensageiros das mudanças trazidas pelas tecnologias da informação e a linha de frente para preparar as gerações futuras para essas transformações”, diz o psicólogo Egenfeldt-Nielsen. Qualquer que seja o formato dos videogames nas próximas décadas, ele certamente será muito mais do que um simples jogo.

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