O mapa da cidade de São Paulo parece o Scooby-Doo. Até 1935, porém, era um Scooby-Doo sem pescoço. Na época, o atual bairro de Santo Amaro era o centro de um município autônomo, que se estendia por todo o território que hoje corresponde à Zona Sul da cidade. Veja no mapa abaixo.
Quem acabou com a independência das terras abaixo do Ipiranga foi um sujeito chamado Armando Salles de Oliveira. Ele era interventor federal – isto é, um governador nomeado pelo presidente, em vez de eleito. Ninguém sabe muito bem porque o dito cujo quis anexar Santo Amaro à capital do estado.
“Acusam uns as eternas rivalidades políticas entre jagunços e maragatos, cujas diferenças continuavam acirradas”, afirma a autora Maria Berardi em um dos livros de uma série intitulada História dos Bairros de São Paulo, disponível aqui. “Falam outros nas dívidas que o Município tinha para com a Capital, cerca de 500 contos.”
Jagunços e maragatos, na época de Getúlio Vargas, eram o equivalente a bolsonaristas e petistas hoje: duas facções políticas que não se bicavam por nada nesse mundo.
O decreto responsável por anexar a área de Santo Amaro (que você vê no mapa abaixo), conta com justificativas oficiais… exóticas. Pelo menos para quem lê hoje em dia. Por exemplo: “(…) dentro do plano de urbanismo da cidade de São Paulo, o município de Santo Amaro está destinado a constituir um de seus mais atraentes lugares de recreio.”
E outro trecho: “O estado de São Paulo não só se dispõe a incrementar em Santo Amaro a criação de hotéis e estabelecimentos balneários que permitam o funcionamento de cassinos, como também destinou verba para melhorar as estradas de rodagem que servem aquela localidade.”
Areas de “recreio”, cassinos e estradas de rodagens à parte, o motivo do decreto não vem ao caso – os fatos que ele gerou, por efeito dominó, foram muito mais interessantes.
De 1935 em diante, Santo Amaro amargou a derrota de deixar de ser sua própria cidade independente, e passar a ser só mais um bairro. Mas não foi nenhum Fla-Flu: ninguém sofreu e viu-se verdadeiramente ofendido por ser anexado à cidade que, na prática, já fazia parte do dia a dia de boa parte das pessoas.
Mas parece que toda mudança, por mais inócua que seja, deixa meia dúzia de moradores e políticos saudosistas. Tanto que, 50 anos depois, em setembro de 1985, um grupo desses aproveitar o clima de redemocratização do final do governo Figueiredo para propor um plebiscito: deveria a maior comarca da Zona Sul se emancipar e voltar a ser uma cidade independente?
O resultado está no acervo do Estadão. O jornal preservou para a posteridade o fiasco do “movimento popular”. O principal sintoma que matou o projeto por uma Santo Amaro “livre” foi a falta de quórum.
Dos 513 mil eleitores aptos a votar, só 91 mil compareceram – uma abstenção de 82%. Quase pior que assembléia de condomínio. Desses 91 mil, estarrecedores 93% votaram contra a proposta, e optaram por permanecer sendo um simples bairro.
A derrota não desceu bem na garganta dos Santo Amaristas. Carlos Eduardo Senger, vice-presidente do movimento separatista, não era muito bom de democracia, e pediu a anulação do resultado ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo. O órgão, porém, não encontrou nenhuma irregularidade na apuração. O massacre foi legítimo – e democraticamente estabelecido.
Senger se recusou a engolir mais uma vez: acusou o TRE de estar envolvido numa suposta fraude – que seria parte de uma grande conspiração orquestrada pelo governo estadual para impedir que Santo Amaro se separasse.
Os funcionários do TRE não gostaram nada do comentário. Lembraram que a organização do plebiscito inútil havia custado 1 bilhão de cruzeiros (R$ 1,7 milhão em valores de hoje) aos cofres públicos. E finalizaram com uma patada: “Esse dinheiro poderia ter sido usada na construção de escolas, pronto-socorros ou em qualquer benefício à população de Santo Amaro. Mas para atender à ganância política de alguns deputados, foi jogado praticamente no lixo.” 2,5 mil funcionários foram mobilizados para organizar a votação.
Quanto à população, bem… “Eu queria votar, mas esqueci e fui para o clube”, afirmou ao jornal, na época, a estudante Sônia de Oliveira Pires – que pretendia colocar um sonoro “não” em sua cédula naquele domingo.