Durante a pandemia de Covid-19, é comum que o SARS-CoV-2, vírus causador da doença, seja chamado simplesmente de “o coronavírus”. Mas esse é um nome cientificamente incorreto – ele não é o único coronavírus conhecido, muito menos o primeiro. Na verdade, há um número indefinido de vírus circulando pela natureza que se encaixam nesse grupo, caracterizado pela presença de uma “coroa” de proteínas pontiagudas. Sete deles evoluíram para infectar humanos. E o primeiro deles foi identificado por uma mulher sem formação acadêmica cuja história está repleta de façanhas de respeito.
June Almeida nasceu em 1930, em Glasgow, na Escócia. De família pobre, teve que abandonar os estudos aos 16 anos para trabalhar. Ela conseguiu um emprego como técnica de laboratório em um hospital em sua cidade natal. Lá, apesar de ganhar um salário minúsculo, aprendeu a analisar tecidos humanos usando microscópios eletrônicos.
Ela seguiu na função até o momento que decidiu imigrar para o Canadá. No novo país, encontrou mais oportunidades de emprego na área científica, e conseguiu aperfeiçoar suas técnicas de observar seres muito pequenos. Durante esse período, foi coautora de diversos artigos, mesmo sem instrução acadêmica. Este seria apenas o início de uma carreira de décadas que a tornaria uma das pioneiras em microscopia eletrônica e uma referência na identificação de vírus humanos.
Em 1966, com apenas 34 anos, June se tornou a primeira pessoa a identificar um coronavírus humano. Na época, ela havia voltado ao Reino Unido e trabalhava no Hospital St. Thomas, um dos mais tradicionais de Londres – sua perícia no Canadá havia chamado a atenção de um professor britânico, que a convidou para a instituição.
Foi nesse período que uma equipe de cientistas, liderada pelo médico David Tyrrell, pediu para June analisar amostras de pacientes que eles acreditavam estarem infectados com um vírus até então desconhecido, que causava sintomas muito parecidos com o da gripe. Eles não tinham a esperança de encontrar nada muito novo, como Tyrrell confessou anos mais tarde. Isso porque, na época, as técnicas de microscopia eletrônica não eram tão boas como hoje, e não era fácil observar vírus fora de plaquinhas de laboratório em laboratório. As amostras que a cientista tinha em mãos eram retiradas diretamente de pacientes humanos, o que dificultava muito o trabalho.
Mas, para surpresa de todos, June conseguiu. Além de visualizar bem o B814 – como era conhecido o vírus misterioso até então –, ela também conseguiu imagens de outros dois vírus, o da gripe e o da herpes, o que permitiu que se comparasse sua estruturas. A cientista percebeu que o novo vírus era de fato inédito, mas que lembrava um pouco o causador da bronquite infecciosa em galinhas, que ela já havia observado anteriormente. Assim, a escocesa flagrava de forma inédita o primeiro coronavírus humano.
O feito era enorme, mas não trouxe muitos louros à época. Isso porque o coronavírus descoberto por June – e outros que viriam em seguida – não era tão relevante do ponto de saúde pública: causava apenas sintomas de resfriado ou gripe. Foi só em 2002, com o surgimento da Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) na China, que um coronavírus causou uma epidemia assustadora. Depois veio a Mers, em 2012, no Oriente Médio. E, agora, a Covid-19 – que também trouxe a história de June de volta aos holofotes.
Felizmente, outros feitos permitiram que a virologista não fosse esquecida. June ajudou a capturar a primeira imagem do vírus causador da rubéola, além de identificar a estrutura do vírus que causa a hepatite B. Também contribuiu para aperfeiçoar uma técnica que usa anticorpos para agrupar vírus em uma amostra e torná-los mais simples de serem observados. Além de tudo, foi instrutora de vários outros cientistas na área de microscopia eletrônica que também assinam descobertas importantes. Um de seus alunos, Albert Kapikian, descobriu o norovírus, um vírus ultra infeccioso que causa diarreia. De fato, a maioria dos livros sobre vírus de hoje contém fotos tiradas pela própria June ou que, sem ela, possivelmente nem existiriam.
Durante sua aposentadoria, na década de 1990, June se afastou dos laboratórios e se dedicou a ser instrutora de ioga. Mas não durou muito: ela retornou ao Hospital St. Thomas como orientadora e ajudou na publicação de algumas das primeiras fotos de alta qualidade do vírus HIV, que pode causar a Aids.
June faleceu em 2007, deixando uma filha e duas netas. “Qualquer conversa com June, independentemente do tamanho do grupo, não era apenas estimulante, mas também cheia de diversão: ela tinha um senso de humor enorme e, às vezes, ácido”, descreveu sua filha Joyce Almeida, que atua como psiquiatra clínica, nesta minibiografia de Jane. Você pode ler o texto clicando aqui.