Não é de hoje que as pessoas têm alguma dificuldade em acreditar nas notícias de jornal. Depois do fim da 2ª Guerra Mundial, alguns nikkeis – termo que designa descendentes de japoneses nascidos fora do Japão – não acreditaram que seu imperador Hirohito havia se rendido aos Aliados.
Então, eles começaram a espalhar um boato entre os nipo-brasileiros do estado de São Paulo: o Japão, na verdade, havia vencido a guerra, e os Aliados estão tentando nos convencer do contrário para abalar nossa moral.
O grupo que acreditava nesse boato se chamava Shindo Renmei, nome que se traduz por “Liga do Caminho dos Súditos”. Entre 1946 e 1947, essa associação nacionalista não ficou só no discurso: alguns integrantes se uniram para cometer atentados contra os makegumi, os “corações sujos” que aceitavam a derrota japonesa.
A colônia japonesa nos anos 1940
A primeira leva de imigrantes japoneses chegou ao Brasil em 1908. Vistos com desconfiança pelos brasileiros, com cultura e hábitos radicalmente diferentes, os recém-chegados nipônicos se organizavam em comunidades fechadas, sem aprender muito do português e sem se misturar com brasileiros ou outras comunidades de imigrantes.
Nos anos 1930, essa comunidade se tornou a maior concentração de japoneses fora do Japão. A partir de 1937, o Estado Novo de Getúlio Vargas começou a reprimir manifestações culturais dos imigrantes que não se misturavam muito, como os japoneses e os alemães (algo que se acentuou após o início da 2ª Guerra, quando o Brasil se opôs ao Eixo).
A partir de 1942, um pouco antes de entrarmos no conflito no front italiano, o Brasil cortou relações diplomáticas com o Japão e os imigrantes pararam de chegar. Os que já viviam aqui no país não podiam falar japonês na rua, viajar pelo território nacional ou morar no litoral sem autorização policial.
Como muitos não falavam português e os rádios foram apreendidos para que eles não recebessem notícias do Japão, a comunidade nipônica ficou cada vez mais isolada. Várias organizações surgiram entre os imigrantes japoneses para providenciar uma rede de apoio mútuo e cuidar dos membros mais pobres da colônia.
Em agosto de 1942, depois de um confronto violento entre brasileiros e japoneses, Junji Kikkawa fundou a Shindo Renmei na cidade de Marília, no interior de São Paulo. A organização chegou a ter 64 filiais nos estados de São Paulo e Paraná, se mantendo com doações de seus quase 120 mil membros, 60% da população nipo-brasileira.
Radicalização
Depois do fim da guerra, a Shindo Renmei se radicalizou contra os nipo-brasileiros que aceitaram a derrota do Japão – o grupo mais próspero entre os imigrantes, que se adaptou melhor ao Brasil e tinha mais acesso às fontes de informações oficiais.
Jornais e revistas em japonês circulavam entre os nipo-brasileiros para tentar convencer a comunidade de que o Japão não tinha perdido a guerra. Estações de rádio clandestinas ajudavam a espalhar a mensagem. Por causa da legislação nacionalista de Vargas, que proibiu as notícias de veículos confiáveis em japonês, a desinformação clandestina prosperou.
Além dos trabalhos de comunicação, eles elaboraram listas dos “corações sujos” que deveriam ser mortos por trair o imperador. Os assassinos da Shindo Renmei eram jovens conhecidos como tokkotai (abreviação de “pelotão dos moços suicidas”), e forçavam suas vítimas a cometer o seppuku, suicídio ritual para recuperar a honra perdida desrespeitando a pátria.
Aqueles makegumi que se recusassem a cometer suicídio eram executados com armas de fogo ou katanas. Os assassinatos começaram com Ikuta Mizobe, no dia 7 de março de 1946, em Bastos, cidade majoritariamente japonesa no interior de São Paulo, e a trilha de sangue continuou. Foram 23 nipo-brasileiros mortos e outros 147 feridos pelas ações da Shindo Renmei.
Infográficos da Segunda Guerra Mundial
Todos os tokkotai se entregavam às autoridades logo depois dos seus crimes, explicando que não tinham nada contra o Brasil ou os brasileiros, e só estavam cumprindo seu dever como súditos do imperador japonês.
O terror que se espalhou entre a comunidade nipo-brasileira, somado ao preconceito dos brasileiros contra os japoneses, levou a confrontos e investigações policias que acabaram com a prisão das lideranças da organização e de boa parte dos tokkotai.
Esse momento sombrio da história nikkei foi contado pelo jornalista Fernando Morais em seu livro Corações Sujos, que ganhou o prêmio Jabuti de Reportagem e de Livro do Ano de Não-Ficção em 2001. A obra virou filme em 2011, dirigido por Vicente Amorim, e você pode assistir na Netflix.