Martha San Juan França
Há três meses, setecentos cientistas de mais de trinta países reuniram-se em Hilton Head, na Carolina do Sul, Estados Unidos, para discutir um problema que está literalmente caindo sobre a cabeça de todos: a chuva. Não bastasse provocar um rombo na camada de ozônio da alta atmosfera e ameaçar o planeta de superaquecimento, a poluição, nas suas diversas modalidades. Também envenena a chuva – algo tão benfazejo e essencial à vida como o próprio ar. Em consequência, 10 mil lagos na Suécia estão praticamente mortos. Na Noruega, outros 2 mil perderam seus peixes. Na Alemanha Ocidental, 35 por cento das florestas estão doentes. O Taj Mahal, um dos mais belos monumentos hindus, está perdendo sua imaculada cor branca. E na Península de Yucatán, ao sul do México, a chuva está rapidamente destruindo obras da civilização maia, que floresceu ali pelo menos 1500 anos antes da chegada do homem branco.
No Brasil, a poluição da chuva quase não é estudada. Isso não quer dizer que os aguaceiros que aqui desabam sejam sempre limpos. Há quatro anos, pesquisadores da Universidade Federal Fluminense constataram que a vegetação da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, estava sendo afetada pela sujeira da chuva. Outros estudos, estes realizados pela Universidade Federal de Viçosa, mostraram que a florado Parque Florestal do Rio Doce, nas proximidades do vale do Aço, em Minas Gerais, também teria sido atingida. Apesar disso o químico Cláudio Alonso, da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), que controla a poluição do ar em São Paulo, afirma que “o problema não tem a gravidade que adquiriu em outros países”.
Como sempre, em todos os lugares onde a chuva está servindo de meio de transporte para a poluição, os vilões da história são as indústrias e os veículos que despejam no ar, todo santo dia, toneladas de dióxido de enxofre e óxidos de nitrogênio. Esses gases reagem com o vapor de água e outros compostos químicos da atmosfera para formar os perigosos ácido sulfúrico (H24) e ácido nítrico (HNO3). Nem por isso se deve entrar em pânico quando um toró nos apanha desprevenidos sem guarda-chuva – o risco maior ainda é ficar resfriado. “Ninguém vai sentir picadas na pele ou ficar com a roupa corroída por causa da poluição”, brinca Cláudio Alonso, da Cetesb. “O problema da chuva ácida é a degradação do meio ambiente a longo prazo.”
Além de poluir rios e lagos e acabar com a flora e a fauna aquática, a chuva ácida se infiltra no solo liberando certos metais potencialmente tóxicos, como alumínio, chumbo e cádmio. Estes podem se introduzir na cadeia alimentar através de plantas e acabar prejudicando a saúde do homem. Segundo o médico Paulo Saldiva, do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Universidade de São Paulo, “a presença de gotículas ácidas na atmosfera talvez represente um risco para a saúde de asmáticos, pessoas com infecções pulmonares, crianças e velhos”.
Ao contrário do que se imagina, mesmo nos locais mais limpos, como o Ártico, a água da chuva é levemente ácida, ou seja, tem pH 5,6. O pH mede o teor de íons positivos de hidrogênio da uma solução. (Por uma convenção, pH designa o inverso do logaritmo da concentração desses íons). Explica o professor Ivano Gutz, do Instituto de Química da USP, que a tabela do pH vai de zero a catorze: “Quanto maior for a concentração daqueles íons, menor será o pH, logo, mais ácida a chuva”. Em várias cidades do oeste da Europa e do leste dos Estados Unidos a chuva chegou a ter pH entre 2 e 3, ou seja, entre o do vinagre e o do suco de limão. A diferença é maior do que parece: uma chuva de pH 3 contém dez vezes mais hidrogênio do que outra com pH 4 e cem vezes mais do que outra com pH 5. Gutz, porém, explica que o conceito de chuva ácida vai mais além: “ A acidez é a ponta do iceberg. Como manifestação óbvia de que a chuva está poluída é o baixo pH, adota-se o nome chuva ácida para qualquer precipitação com alto teor de poluentes”.
Nesse últimos anos, quando o homem parece acordar para os estragos que vem causando à natureza, a chuva ácida costuma ser citada – como uma espécie de holocausto ecológico recente em forma líquida. Mas a ameaça é quase tão antiga quanto a própria Revolução Industrial. A expressão foi usada originalmente no século passado, mais precisamente em 1872, quando o químico ingês Robert Argus Smith analisou a qualidade do ar da cidade de Manchester. No seu livro Air and rain: the beginnings of a chemical climatology (Ar e chuva: os inícios de uma climatologia química), Smith estabelece pela primeira vez uma ligação entre o pH da chuva e a combustão do carvão naquele centro industrial. Quase meio século depois, o biólogo norueguês Knunt Dahl reconhecia a relação entre a acidez das chuvas e a morte das plantas e peixes em vários lagos de seu país.
Os lagos saudáveis em toda Escandinávia, aqueles dos cartões postais, teriam um pH em torno de 7,0. Em muitos deles, esse valor baixou para 5,0. A acidez matou algas, plânctons e insetos. Sem esta vida microscópica, as águas adquiriram uma transparência não natural. Depois, à medida que o pH baixava, desapareceram peixes, em especial salmões e trutas. Enfim, os pássaros, sem ter o que comer, também sumiram. Na primeira Conferência Mundial do Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, em 1972 (a próxima, por sinal, será no Brasil, em 1992), os suecos deram o alerta. Se a guerra química do homem contra a natureza continuasse, em cinquenta anos, calcularam eles, metade dos lagos de seu país estariam mortos. Por ironia da sorte – ou mais exatamente devido ao complexo mecanismo do clima no planeta – , suecos e noruegueses estavam arcando com um desastre armado a bons mil quilômetros de distância, na nevoenta e industrializada Inglaterra.
As correntes de ar que se deslocavam do oceano para o continente carregavam a maior parte dos 5 milhões de toneladas anuais de dióxido de enxofre expelidas pelas centrais elétricas movidas a carvão das Ilhas Britânicas. Quando alcança o sul da Noruega e o sudoeste da Suécia, a mistura poluída se precipita sob a forma de chuva. Calcula-se que algumas regiões da Suécia chegaram a ser contempladas todo ano com um presente grego: 2 gramas de ácido sulfúrico por metro quadrado de chão. A Península Escandinava não foi a única premiada. As emissões de dióxido de enxofre na Europa na última década foram estimadas em 70 milhões de toneladas anuais. Esses gases não respeitaram fronteiras: Alemanha Ocidental, França, Checoslováquia, União Soviética, Itália e Espanha tiveram sua cota de participação no involuntário comércio internacional de poluição. No Brasil, a termelétrica de Candiota, em Bagé, Rio Grande do Sul, por queimar carvão de má qualidade, acidifica as chuvas que caem no Uruguai. Paradoxalmente, até as medidas antipoluentes adotadas na década de 70 contribuíram para o mercado exportador da chuva ácida. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Parque Nacional de Adirondack, uma extensa área verde no nordeste dos Estados Unidos, com montanhas e lagos aprazíveis, protegidos por uma rigorosa legislação de defesa do meio ambiente. Ninguém imaginaria que naquele paraíso terrestre houvesse qualquer sinal de poluição. Mas em 1976 constatou-se que os peixes de mais da metade dos lagos de Adirondack haviam desaparecido. De onde veio o veneno que teria acabado com eles? O autor do crime estava a cerca de 800 quilômetros do Parque. Trata-se do complexo siderúrgico de Sudbury, em Ontário, no Canadá.
Para impedir que a poluição prejudicasse as áreas vizinhas, em sudbury as chaminés tem descomunais 400 metros de altura. Lançados às camadas mais altas da atmosfera, os gases venenosos são levados pelos ventos que sopram para o leste até encontrar a barreira dos Montes Apalaches e se precipitar como chuva ácida em pleno parque. Os americanos se queixaram, mas não puderam fazer papel de vítima inocente. Segundo as últimas pesquisas, o Canadá recebe dos Estados Unidos quatro vezes mais dióxido de enxofre e onze vezes mais óxido de nitrogênio do que envia para o país.
As florestas da América do Norte não foram afetadas pela chuva ácida. Mas, na Europa, os efeitos parecem devastadores. Na Alemanha ocidental, Suíça, França e Áustria, as árvores estão doentes, talvez porque o solo ou o tipo de vegetação seja especialmente vulnerável à acidez. Na Alemanha, uma paisagem desoladora: pinheiros e abetos, antes grandiosos, apresentam folhagem amarelada, com manhas escuras que provocam a falta de nutrientes (cálcio e magnésio). As árvores mais afetadas já perderam a folhagem: os troncos nus estão cobertos de ramos finos, raquíticos e quebradiços.
Nas cidades, a corrosão dos monumentos, edifícios e veículos é de duas a dez vezes mais rápida do que no campo. Na região de Katowice, no sul da Polônia, por exemplo, os trens não podem correr mais de 40 quilômetros por hora devido à corrosão dos trilhos. Os gregos, por sua vez, estão lutando contra o tempo para contra-atacar a chuva ácida que aos poucos dissolve seus conhecidos monumentos históricos. Para o especialista em corrosão, T. N. Skoulidikis, alguns dos grandes templos do seu país, como o Pantenon, em Atenas, se deterioraram amis nesse último quarto de século do quem em todos os 2400 anos anteriores. A poluição praticamente já apagou as delicadas frisas e figuras gravadas na entrada da construção.
Ali, a solução de ácido sulfúrico reage com o mármore transformando a superfície em gesso macio. Problema semelhante se suspeita que esteja ocorrendo no Coliseu, em roma. Às vezes, são falsos alarmes. Quando as esculturas dos doze profetas, obra em pedra-sabão do Aleijadinho, na cidade mineira de Congonhas do Campo começaram a ser corroídas, afirmou-se que a culpada era também a chuva ácida. Dessa vez, parece que tudo não passou de um ataque de fungos. Melhor sorte não tiveram os monumentos no sul do México. Um estudo mostrou que as esculturas e ruínas maias estão sendo destruídas pela chuva ácida.
Na América do Sul, chuvas com pH médio 4,7 têm sido registradas tanto em áreas urbanas e industrializadas como em regiões remotas. “Isso não quer dizer que a poluição se espalhou por toda parte”, tranquiliza a física Lycia Moreita Nordemann, do Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) de São José dos Campos, no interior paulista, uma das poucas pesquisadoras brasileiras de chuva. Ela observa, por exemplo, que os estudos realizados na floresta amazônica mostraram que os valores dos pH da região (entre 4,5 e 4,7) estão próximos daqueles observados em áreas das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. A explicação é natural. A chuva ácida provém da oxidação do sulfeto de hidrogênio, ou seja, a reação do sulfeto em contato com o oxigênio do ar, que se volatiza nas regiões alagadas. Mas resulta principalmente da grande quantidade de ácidos orgânicos emitidos pela própria floresta.
Nos últimos dois anos, a equipe de Lycia Nordemanna analisou a composição das chuvas em seis cidades do litoral brasileiro. “Nossa preocupação foi determinar o índice de poluição e não apenas o pH”, frisa a pesquisadora. Como exemplo, ela cita o caso de Cubatão, cidade em que já havia medido a acidez da chuva há cinco anos. Naquela época, quando Cubatão era considerada um dos lugares mais poluídos do mundo, o pH da chuva ali era 6,4, ou seja, acima do índice perigoso. Isso porque uma das principais fontes de poluição, as indústrias de adubos químicos, jogavam no ar toneladas de fosfato de cálcio que acabavam por neutralizar a acidez da chuva. “O pH da água estava dentro dos padrões, mas havia uma concentração elevada de poluentes” interpreta Lycia.
Ela afirma que a poluição a ser detectada na costa cearense e já é pronunciada na região fluminense de Niterói. Ali, o pH é 5,5, o que em princípio deveria ser tranquilizador. “Mas a acidez que poderia resultar da alta concentração de nitratos e sulfetos é neutralizada pela presença de cálcio e amônio”, avalia Lycia. A pesquisadora do INPE concorda com o químico da Cetesb, Cláudio Alonso, quando ele sustenta que a chuva ácida, por enquanto, não é um problema grave – nem em São Paulo, onde o pH gira em torno de 5,0. Mas a pesquisadora avisa: “se a emissão de dióxido de enxofre e de óxido de nitrogênio´aumentar, aí poderemos ter motivo de preocupação, porque nossos solos já são naturalmente muito ácidos.
Males para a saúde
Desde que os cientistas começaram a estudar os efeitos da chuva ácida, especulou-se sobre os danos que ela causaria ao organismo humano, Mas os médicos não chegaram a resultados conclusivos. Segundo o patologista Paulo Saldiva, do Laboratório de Poluição Experimental da USP, tudo indica que as partículas ácidas presentes na chuva têm efeito cumulativo sobre o organismo, podendo acelerar o desenvolvimento de doenças em pessoas menos saudáveis. “em geral, antes de alcançar os pulmões, as partículas se acumulam no nariz ena garganta” informa. “Quando isso acontece, pioram os casos de asma, rinite e sinusite alérgica.”
Se as partículas de ácido sulfúrico e ácido nítrico solúveis na chuva se infiltrarem nos brônquios, reduzem os seus mecanismos de defesa contra infecções. Isso, segundo Saldiva, predispões ao aparecimento de broncopneumonias. “Se chegam aos pulmões”, diagnostica, “podem aumentar os riscos de enfisemas.” Ele acredita que o acúmulo de secreção, a forma de defesa do organismo contra intrusos, pode obrigar o coração a um trabalho extra para bombear o sangue através dos pulmões – o que predisporia a doenças cardiovasculares. Por último, os olhos expostos á poluição da chuva têm probabilidade maior de apresentar conjuntivite.
Em busca do-guarda chuva
Cerca de 90 por cento do dióxido de enxofre encontrado no ar da Noruega vem de outros países. É claro que os noruegueses pouco poderão fazer para salvar seus lagos do envenenamento, se não contarem com a ajuda dos vizinhos europeus. Isso vale também para outros países do continente. Assim, há dois anos, os membros do Mercado Comum Europeu assinaram um acordo que prevê, até 2003 a redução pela metade no total das emissões do dióxido de enxofre em relação aos níveis da década de 80. O mesmo acordo determina uma redução de 30 por cento na emissões de óxido de nitrogênio até 1998. O documento estabelece patamares diferentes para cada país segundo o volume de poluentes que atravessa suas fronteiras e sua dependência do carvão, uma das maiores fontes de enxofre.
Aproveitando os novos ventos políticos, os países ocidentais se prontificaram a ajudar os vizinhos do Leste europeu. As duas Alemanhas, por exemplo, assinaram um acordo de intercâmbio de tecnologia e controle de qualidade do ar. A Suécia ofereceu 45 milhões de dólares para assistência ambiental à Polônia nos próximos Três anos; os Estados Unidos repartirão outros 40 milhões entre a Polônia e a Hungria. Na frente interna americana, por outro lado, corre solto no Congresso e na Casa Branca o debate sobre a ampliação do Clean Air Act, legislação ambiental criada em 1970 e nunca obedecida ao pé da letra, visando reduzir pela metade as emissões dos gases geradores da chuva ácida.
Para saber mais:
Antes que a natureza morra, Jean Dorst, Editora Edgard Blucher, São Paulo, 1977