Como uma gata supostamente extinguiu sozinha toda uma espécie de passarinhos
Há controvérsias sobre a proeza, que teria acontecido na Nova Zelândia do século 19.
Qual o traço mais irritante de um gato doméstico? Quem tem um bichano em casa talvez responda que seja correr como um maluco de noite, ou então afiar as unhas no sofá, ou ainda derrubar todos os itens da estante. Mas esse bichinho pode ser muito mais perigoso.
Uma pesquisa de 2013 detectou que gatos domésticos que circulam livremente matam de 1,3 a 4 bilhões de aves e de 6,3 a 22,3 bilhões de mamíferos todo ano nos EUA. A maioria dessas mortes é causada por gatos não castrados ou sem dono. Outro estudo, de 2023, observou que os gatos são capazes de predar 2.084 espécies diferentes (aves, mamíferos e répteis), das quais 347 estão em risco de extinção.
A ciência também aponta que os gatos com dono, que possuem todas as conveniências da vida familiar, costumam predar em territórios bem menores do que os gatos selvagens, que precisam caçar a própria comida. Mas isso não significa que eles não sejam um perigo. E um ótimo exemplo é a gatinha Tibbles, que viveu mais de 100 anos atrás.
Tibbles, a assassina
No finalzinho do século 19, Tibbles, uma gata doméstica comum, vivia com seu dono, David Lyall, na Ilha Stephen, localizada no Estreito de Cook, que separa as duas ilhas da Nova Zelândia. Lyall era o faroleiro da ilha, que tem apenas 1,5 km2 de área.
Nessa ilha também vivia a cotovia-da-ilha-stephen (Traversia lyalli), um passarinho incapaz de voar e endêmico da região. Acredita-se que, no passado, essa ave tenha povoado toda a Nova Zelândia. No entanto, na época de sua descoberta, 1894, seu habitat estava restrito à Ilha Stephen.
Aliás, 1894 foi também o ano em que Lyall e Tibbles se mudaram para a ilha. Muito interessado em biologia, o faroleiro foi quem chamou a atenção dos cientistas para a espécie: ele despachava exemplares dos passarinhos para naturalistas na Inglaterra. Muitos desses animais eram presentes de Tibbles, que os trazia mortos, mas ainda em boas condições.
Um desses naturalistas, Sir Walter Buller, era especialista em aves. Ele detectou que se tratava de uma espécie ainda não descrita e relatou a descoberta ao Sindicato Britânico de Ornitologistas. O nome em inglês do bicho, “Lyall’s wren”, é uma homenagem ao faroleiro que enviava os espécimes para a terra da rainha.
As cotovias eram pássaros pequeninos (cabiam em uma mão humana) e com hábitos noturnos. Como não voavam, acredita-se que eles vagavam à noite procurando insetos no chão, como outros pássaros similares fazem hoje.
Esses passarinhos, portanto, eram vítimas fáceis para uma gatinha com muito tempo livre e um hábito de dar presentes. Dentro de um ano após sua descoberta, as cotovias estavam todas mortas. Uma espécie inteira reduzida a pó em questão de meses. E a culpada era só uma: Tibbles.
Ou pelo menos foi o que se pensou por mais de um século.
Justiça para Tibbles?
Em 2004, a Sociedade Ornitológica da Nova Zelândia publicou um estudo que argumenta que Tibbles pode não ter sido a única culpada pela extinção das cotovias. Segundo a pesquisa, existem documentos da época que sugerem que alguns espécimes foram avistados nos dois ou três anos seguintes.
Os autores do estudo também sugerem que pode ter havido mais de um gato na ilha, embora não existam evidências históricas que permitam certeza sobre isso.
“A ideia de que a cotovia-da-ilha-stephen foi exterminada pelo gato de um único faroleiro foi publicada pela primeira vez por Rothschild (1905, 1907) e tem sido muito repetida desde então. No entanto, a fonte de Rothschild — Travers — na verdade tinha uma opinião diferente”, diz o texto, referindo-se ao negociante Henry Travers, que intermediava as trocas de cotovias entre Lyall e os britânicos.
“[Travers] escreveu sobre o corruíra-parda da Ilha Stephens que ‘um gato foi o primeiro a chamar a atenção para ele, tendo depositado um na porta de um dos faroleiros, que por acaso era um entusiasta de pássaros nativos. Os gatos, no entanto, logo deram fim ao restante’. Outros escritores da época (…) também se referem ao corruíra sendo exterminado por ‘os gatos’”, afirma o artigo.
Uma das hipóteses levantadas é que esses outros gatos podem ter vindo a bordo de barcos que traziam suprimentos para a ilha e que uma dessas visitantes talvez estivesse grávida de filhotes, dando início a uma população local de bichanos.
É certo que, na virada do século, com certeza havia uma população de gatos suficiente na ilha para que isso fosse um problema para a fauna local. Em 1901, o governo autorizou os faroleiros a caçarem os gatos, oferecendo incentivos em dinheiro. Em 1925, foi reportado que já não havia mais nenhum gato na ilha.
Mas, independentemente dos eventos posteriores, é fato que o que varreu do mapa as cotovias-da-ilha-stephen foi a predação pelos gatos, tenha sido ela feita por um único indivíduo (Tibbles) ou por mais de um. E a gatinha, assim, entrou para a história como um símbolo de como o gato doméstico pode ser perigoso.
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