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Mapeamento do DNA: a nova arma contra a depressão

Testes genéticos que avaliam quais são os melhores (e os piores) remédios para você são a mais nova ferramenta da psiquiatria. E funciona.

Por Pamela Carbonari
Atualizado em 15 jan 2023, 11h48 - Publicado em 24 ago 2018, 14h02
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  • Fui diagnosticada com depressão aos 25 anos, depois de uma crise de ansiedade. Era feriado e o sol forte de novembro batia nas minhas costas enquanto eu preenchia uma página em branco com parágrafos que não faziam sentido. Relia os artigos científicos que sustentariam a reportagem que tentava escrever, relia as mais de dez entrevistas que havia feito, relia as anotações de livros que tinha lido, relia o que custava a escrever, relia, relia, relia. O telefone tocou, eu atendi, caí no choro.

    — Você saiu de casa hoje? Almoçou? Alguém sabe que você está assim? Pâmela, me responde.

    Não conseguia dizer mais do que “sim” ou “não”. Do outro lado da linha e a mil quilômetros de distância, minha mãe pedia para que eu meditasse, desse uma volta, chamasse alguém para me fazer companhia, dormisse, marcasse uma consulta psiquiátrica. Fazia semanas que acordava com o coração acelerado, a respiração ofegante como se tivesse subido 20 lances de escada enquanto dormia. Eu, que sempre ri na cara dos insones, estava despertando antes das seis da manhã aflita. No trabalho, rendia pouco e achava que cada tarefa extra que me era passada acabaria em demissão por justa causa. Quando minha mãe sugeriu que fosse ao psiquiatra, desliguei o telefone.

    O que eu mais temia não era a ajuda profissional, mas o troca-troca de remédios típico de quem começa tratamentos, e a convivência com os efeitos colaterais que cada um pode dar no início do tratamento: ansiedade redobrada, tontura, dor de cabeça, náusea, calor, vista opaca, olhos brilhantes de lágrimas, sonolência, insônia…   

    O troca-troca acontece porque há dúzias de antidepressivos no mercado. Cada um interage com o corpo de um jeito. Ele pode lidar muito bem com um, e bem mal com outro. Mesmo um remédio de eficácia comprovada por décadas de uso global, como a fluoxetina, princípio ativo do Prozac, pode simplesmente não fazer efeito no seu corpo. Como saber, então, qual é o melhor remédio para você? Por tentativa e erro. E haja erro. De acordo com uma pesquisa da Associação Americana de Psiquiatria divulgada neste ano, 45% dos 1.167 pacientes analisados fizeram três ou mais tentativas até encontrar o antidepressivo certo.

    Mas hoje existe uma alternativa ao esquema de tentativa e erro. São os testes genéticos para determinar quais antidepressivos funcionam melhor no seu corpo. Grosso modo, são testes que fazem uma leitura do seu DNA para detectar se ele é mais amigo deste ou daquele remédio. Por ironia do trabalho, recebi o desafio de escrever uma reportagem sobre esses testes justamente quando começava meu tratamento. Então entrei em contato com um laboratório brasileiro que faz esse tipo de serviço desde 2013.

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    SI393_depressão_2
    Imagem sem texto alternativo (Willian Santiago/Superinteressante)

    Serotonina no esgoto

    O teste que fiz ao coletar células da minha boca com uma haste de algodão reuniu informações de 26 genes para determinar como meu organismo reage aos 79 remédios mais usados para o Sistema Nervoso Central – não só antidepressivos, mas também ansiolíticos, antipsicóticos, analgésicos, opioides, psicoestimulantes, estabilizantes de humor e anticonvulcionantes. É um mapa de como meus genes determinam a absorção dos remédios, distribuem, metabolizam, eliminam e, sobretudo, como construíram os neurônios e como programaram minha recaptação de neurotransmissores.

    Explico: os antidepressivos mais comuns são os Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRS). É a classe de medicamentos de remédios bastante receitados – paroxetina, escitalopram e a própria fluoxetina.

    O que eles fazem é bombar a circulação de serotonina, um dos neurotransmissores responsáveis pelo bem-estar. Imagine que seu cérebro é uma banheira e a serotonina, a água. A torneira de onde sai a água são os seus neurônios. Eles produzem a serotonina e lançam na banheira. Quanto mais cheia a banheira cerebral estiver, mais “feliz”, digamos assim, você se sente.

    Essa banheira, porém, tem um ralo. É o sistema de recaptação. Se o seu ralo for grande demais, a serotonina não acumula. E você passa a viver os sintomas característicos da depressão. O que os ISRSs fazem, então, é obstruir esse ralo, fechar parcialmente a recaptação. Aí a banheira enche, e você volta a ter uma vida normal.

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    Claro, se a banheira encher demais você entra num estado de euforia que coloca todo o sistema cerebral em risco. Drogas ilegais, como o MDMA (princípio ativo do ecstasy) obstruem tanto seu ralo que a banheira transborda. Você ganha horas e horas de felicidade plena, mas sob risco de overdose e com a garantia de uma ressaca monstruosa. Os ISRSs agem de forma bem mais branda, de modo que a banheira jamais transborde.      

    Só tem um detalhe. Cada pessoa tem um tipo de ralo, e cada remédio é uma tampa com um formato diferente. Digamos que a fluoxetina seja uma tampa redonda; e o escitalopram uma tampa quadrada. Se o seu ralo for quadrado, a fluoxetina não vai encaixar ali. E o remédio não terá efeito algum  – o ralo seguirá tragando sua felicidade esgoto abaixo.    

    O teste genético consegue dizer, com base em estudos feitos ao longo de décadas, se o seu sistema de recaptação de serotonina é “redondo” ou “quadrado”. Claro que isso é só figura de linguagem. O processo é químico, não geométrico. E não há 100% de certeza. Mas essa é uma forma de visualizar. Seja como for, o teste dá uma aproximação, e diz se o seu cérebro tem mais afinidade com fluoxetina ou com escitalopram.

    Nem todos os remédios atuam sobre a serotonina. A bupropiona, bem popular, age para aumentar a circulação de outro neurotransmissor ligado ao bem-estar, a dopamina (coisa que a cocaína também faz, só que, obviamente, de forma descontralada e extremamente arriscada). Outro remédio comum, a mirtazapina, dá um boost em outra substância cerebral, a noradrenalina (e na serotonina também, ao mesmo tempo). Seja como for, os testes também mapeiam a afinidade do seu corpo com eles.    

    O mapeamento também olha para o seu fígado. É ele quem “digere” os remédios que você toma (e todas as substâncias intrusas que você coloca para dentro). Você fica bêbado enquanto o álcool circula pelo seu sangue. O fígado, então, passa a capturar as moléculas de álcool e metabolizá-las, ou seja, quebrá-las em moléculas menores, que o seu corpo possa expelir com mais facilidade. Com remédios é a mesma coisa. Eles agem enquanto estão em circulação. Depois que o fígado prende e arrebenta as moléculas intrusas dos antidepressivos, eles deixam de fazer efeito.

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    Quem faz essa quebradeira no fígado são enzimas específicas. A enzima que acaba encarregada de quebrar a fluoxetina, por uma questão de afinidade química, é a chamada CYP2D6 (as pessoas que dão nomes para as enzimas devem ter algum grau de parentesco com as que batizam os robôs de Star Wars).

    Se o seu organismo produz muita CYP2D6, a fluoxetina pode acabar metabolizada antes de fazer efeito. Se ele produz pouca, você pode acabar com uma dose maior do remédio no organismo do que deveria, e sofrer mais com os efeitos colaterais do que com os benefícios do medicamento.

    Os testes, enfim, também conseguem detectar se você produz a CYP2D6 e várias outras enzimas de forma adequada. Como? Se você tiver alguma mutação no gene que determina a produção da enzima encarregada de tal remédio, significa que você provavelmente não se dará bem com o remédio. De novo: a certeza não é de 100%, tanto que o resultado do teste vem nas cores do semáforo: os que aparecem na faixa verde são os que provavelmente não lhe trarão problemas, e apresentarão o efeito desejado. Os da faixa vermelha são os que você deve evitar (pelo fato de o seu corpo ser um mau produtor das enzimas ligadas a tais remédios). E ainda há a faixa amarela, representando aqueles em que segue valendo a tentativa e erro – aqueles que talvez batam bem com você, talvez não.

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    O QUE O TESTE ENTREGA

    Depois de ter o DNA testado, o paciente recebe uma lista como esta aqui embaixo. Aparecem ali os princípios ativos mais indicados para ele (em verde), os menos (em vermelho) e aqueles que vale tentar (em amarelo). O exemplo aqui é aleatório. Chamemos o paciente de Sr. X:            

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    Imagem sem texto alternativo (Willian Santiago/Superinteressante)

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    Um novo teste do pezinho

    Um levantamento realizado pela organização de saúde Mayo Clinic, nos EUA, mostrou que quem fez o exame genético teve uma resposta 70% melhor à medicação se comparado àqueles que usaram antidepressivos sem ter realizado o teste. Além disso, conhecer a natureza dos próprios genes pode ser saudável para o bolso – e para a economia. Outros estudos feitos nos EUA mostram que quem toma remédios sem testar seu perfil genético falta três vezes mais no trabalho e representa um custo de US$ 5 mil a mais aos planos de saúde. Por lá, é possível pagar R$ 600 pelo exame. Aqui, onde a tecnologia já existe há cinco anos, custa em torno de R$ 4 mil.

    “É raro encontrar alguém que metabolize normalmente todos medicamentos utilizados para o sistema nervoso central. Mas, mesmo com esse manual de instruções em mãos, a avaliação de um médico segue sendo fundamental. O teste genético é uma ferramenta, uma informação a mais para ajudar, em conjunto com histórico de tratamentos prévios, ambiente, fase da vida” afirma Guido Boabaid May, psiquiatra e fundador da Gntech, uma empresa catarinense de biotecnologia que fez o meu teste genético para essa reportagem.

    Alguns psiquiatras não consideram a técnica precisa o bastante, já que os estudos que balizam os testes genéticos foram feitos em relativamente poucas pessoas. Precisamos de mais estudos, para determinar a relação de tal gene com a produção de tal enzima, por exemplo, para aumentar a acurácia dos resultados.

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    De qualquer forma, há um consenso de que os testes são, de fato, uma ferramenta eficaz. Tanto que os planos de saúde dos EUA cobrem o mapeamento genético. Por aqui, o próximo passo é torná-los mais acessíveis. “Espero que os preços baixem com o tempo. Esse é um teste que deveria ser feito logo que você nasce, igual o do pezinho”, diz o psiquiatra Alexandre Valverde, clínico particular formado pela Unifesp.

    Desde que saí do consultório psiquiátrico pela primeira vez, faço terapia semanalmente e sigo com o mesmo remédio. A prescrição tinha sido um tiro certeiro: ele estava entre as substâncias que, de acordo com meus genes, meu corpo assimila bem. Com o passar do tempo, os sintomas das minhas doenças foram virando lembranças de um passado ao qual não pretendo voltar. E, se algum dia, eu me perder pelo labirinto de outra doença psiquiátrica, sei que agora tenho um mapa para me ajudar a sair de lá. Já vi um pouco dos meus genes de perto.

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