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Exame de próstata: a polêmica do cutuco no botico

Enquanto o novembro azul faz campanha pelo exame de toque retal, o Ministério da Saúde, o Inca e a OMS não o recomendam como rotina anual. Entenda a razão.  

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 8 dez 2023, 10h04 - Publicado em 7 dez 2023, 19h35
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  • No dia 6 de novembro de 2023, estreou no YouTube uma “campanha do Porta dos Fundos em prol da sua porta dos fundos” – para incentivar a realização do exame de toque retal para câncer de próstata. O canal de comédia fez um vídeo com o galã Antônio Fagundes soltando frases do tipo “deixar um profissional cutucar o seu botico é a melhor escolha para uma vida saudável”.

    Campanhas em benefício ao acesso à retaguarda, você sabe, são comuns em novembro. No começo dos anos 2000, na rabeira de um movimento de conscientização iniciado na Austrália, o mês se tornou azul e passou a ser dedicado à prevenção de tumores malignos na próstata, responsáveis por 28,6% das mortes de homens por cânceres em geral. 

    A doença atinge 65 mil pessoas por ano, e mata algo como 15 mil. 20% dos diagnósticos acontecem já em um estado avançado. Sabe-se que ela é mais comum em brancos do que em asiáticos, e mais comum em negros do que em brancos – um recorte étnico importante, já que 56% da população brasileira é negra. O histórico familiar também é um fator de risco.  

    O exame de toque retal, em que o médico insere um dedo no ânus do homem e apalpa a próstata por 10 ou 20 segundos em busca de alterações, não é o único do arsenal preventivo. Também existe o exame de sangue, em que se pode averiguar a prevalência de uma molécula chamada antígeno prostático específico – PSA, na sigla em inglês. A concentração de PSA aumenta quando há tumores no órgão (tanto os malignos como os inofensivos). 

    A recomendação mais comum é que todo homem com mais de 50 anos realize o exame de toque e o PSA anualmente, ainda que não haja sintomas (nos casos em que sintomas, como sangue na urina ou dor para fazer xixi, nem se fala). 

    Se os resultados forem preocupantes, o próximo passo é fazer uma biópsia da próstata, ou seja: cortar um pedacinho e levá-lo para o laboratório. É que metade dos homens passa por um aumento benigno na próstata após os 50 anos, e também existem inflamações causadas por bactérias – é importante eliminar essas possibilidades para não operar uma pessoa saudável. 

     

    Quem procura, acha

    O problema: não há evidências de que exames anuais em homens sem sintomas diminuam a mortalidade masculina como um todo (há alguma evidência de que reduzam a mortalidade especificamente por câncer de próstata, mas a um custo alto de sobrediagnóstico, um conceito que entenderemos a seguir).

    Por isso, o Ministério da Saúde e o Instituto Nacional do Câncer (Inca) recomendam o PSA e o toque retal não para todos acima dos 50, mas apenas em quem exibe sintomas. O mesmo vale para a Organização Mundial da Saúde (OMS) e para as autoridades de saúde da maioria dos países desenvolvidos. Um dos únicos órgãos brasileiros de porte que mantêm a recomendação é a Sociedade Brasileira de Urologia (SBU). 

    Pode não ajudar, mas não atrapalha, certo? Mais ou menos. É que nem todo câncer é agressivo: muitos crescem tão devagar que podem ser ignorados e nunca serão percebidos. O tratamento, por outro lado, é péssimo para a qualidade de vida do paciente. Nas palavras do Inca: “Muitos, com a doença menos agressiva, tendem a morrer com o câncer ao invés de morrer do câncer. Mas nem sempre é possível dizer, no momento do diagnóstico, quais tumores terão comportamentos agressivos e quais terão crescimento lento”. 

    Um estudo na Austrália calculou que a vigilância excessiva cobra um preço: em 2012, 18% dos cânceres em mulheres (11 mil de 55 mil) e 24% dos cânceres em homens (18 mil de 77 mil) foram diagnosticados sem necessidade, e que 8,6 mil dos 18 mil casos masculinos eram na próstata. (1) Se os exames anuais aumentam o número de diagnósticos e de pessoas tratadas, mas não diminuem a mortalidade, então existe muita gente sofrendo à toa com a remoção do órgão, que pode causar incontinência urinária e impotência sexual. 

    Veja só as conclusões de dois grandes estudos publicados em 2009, que analisaram juntos mais de 200 mil homens e até hoje são os mais citados sobre o tema. Em um deles, (2) a mortalidade foi 13% maior no grupo que fez os exames preventivos do que no grupo que não se testava anualmente (algo que está dentro da margem de erro, vale notar). O outro até encontrou uma queda de mortalidade significativa por câncer de próstata, de 20%, no grupo que fazia regularmente o PSA, (3) mas ela exigia 150 biópsias e 48 diagnósticos de câncer para cada vida salva. (4) 

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    Países que fizeram o caminho oposto colheram resultados animadores. Vejamos o caso de outro câncer. A Coreia do Sul passou a diagnosticar quinze vezes mais tumores na tireoide entre 1993 e 2011, conforme o governo aumentou a grana destinada a rastrear o problema na população saudável. Diante dessa epidemia improvável de diagnósticos, eles fecharam a torneira de dinheiro. O número de cirurgias caiu de 43 mil em 2013 para 28 mil em 2014. (5) Mas a mortalidade permaneceu idêntica. Ou seja: muita gente tirou a glândula à toa, e hoje precisa tomar medicação diariamente para manter os hormônios nos níveis certos. 

    Ainda há um obstáculo nessa linha de argumentação: os estudos na Europa e nos EUA são feitos com populações majoritariamente brancas, e como já dissemos, câncer de próstata é mais prevalente em populações negras. Por isso, o ideal é fazer nossas próprias pesquisas – não podemos dar por certo que a demografia brasileira renderá resultados idênticos. 

    Mas, ainda que se conclua nas próximas décadas que o exame de toque retal e o PSA têm pouco valor preventivo, o combate ao machismo não tornará algo menos necessário para a saúde pública. Não é preciso um cutucão no botico para desestimular homens a visitarem um médico. Eles vivem, em média, sete anos a menos do que as mulheres, e sofrem mais com doenças do coração, câncer, diabetes, colesterol e pressão alta. Tudo isso é motivo para reservar um mês bigodudo no calendário. 

    Enquanto os cientistas trabalham, não é difícil saber qual é a decisão mais sensata para você, pessoa com próstata: conversar com um médico e fazer escolhas bem informadas. É ótimo entender os riscos e benefícios do PSA ou do exame de toque e tomar uma decisão racional, que não considere o medo de um procedimento indolor. Mas lembre–se de que a saúde do homem é algo muito maior que a próstata. Nós somos historicamente mais alcoólatras, tabagistas e negligentes com a saúde que as mulheres. Nenhum exame, sozinho, é uma bala de prata contra isso. 

    Fontes (1) “Estimating the magnitude of cancer overdiagnosis in Australia”, de Paul Glasziou e outros. (2) “Mortality Results from a Randomized Prostate-Cancer Screening Trial”, de Gerald L. Adriole e outros. (3) “Screening and Prostate-Cancer Mortality in a Randomized European Study”, de Fritz H. Schröeder e outros. (4) “Novembro Cinza”, de Olavo Amaral na revista Piauí. (5) “South Korea’s Thyroid-Cancer “Epidemic” — Turning the Tide”, de Hyeong Sik Ahn.

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