Na última terça (9), a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento da ação de suspeição do ex-ministro Sérgio Moro – que acontece quando um juiz tem a sua imparcialidade questionada. A ação foi um pedido da defesa do ex-presidente Lula, cujas condenações relacionadas à Lava-Jato foram anuladas na segunda-feira (8) pelo ministro do STF Edson Fachin.
Gilmar Mendes, também ministro do STF, disse que Moro foi parcial ao julgar o caso de Lula, e elencou uma série de atos irregulares do ex-juiz como argumento para sustentar essa alegação. Mendes também disse, em referência a Moro, que ninguém pode se achar o “ó do borogodó”, além de declarar que “cada um terá o seu tamanho no final da história”.
É bem provável que você já tenha ouvido (ou dito) a expressão acima – ainda que não soubesse exatamente o seu significado. No caso, Mendes se referiu a “ó do borogodó” como alguém especial e que, por algum motivo, recebe tratamento diferenciado – a “última bolacha do pacote”. Mas esse não é o único jeito de se usar essa expressão.
De acordo com o dicionário Michaelis, “borogodó” é um termo coloquial que significa “atrativo físico especial e irresistível”, ou, ainda, “manifestação delicada de apreço ou de amor; carinho”. É a mesma definição usada pelo grupo de samba Borogodó, que também já afirmou que a palavra é um termo antigo usado nos morros cariocas.
É difícil encontrar a origem dela – assim como o seu significado, que não é único. Prova disso é o livro Em Busca do Borogodó Perdido (2005), coletânea de crônicas escritas pelo jornalista carioca Joaquim Ferreira dos Santos. A proposta dos textos era, justamente, trazer de volta palavras e expressões do vocabulário brasileiro que estavam caindo em desuso. E, em apenas três crônicas, a palavra “borogodó” recebe ao menos 15 sugestões de significado diferentes.
“Isso é um indicativo do caráter polissêmico (múltiplos significados) da palavra”, escreveu a pesquisadora Márcia Maria dos Santos, da Universidade Federal da Bahia, em uma tese sobre o livro. Para analisar a obra, Márcia entrevistou 36 pessoas e pediu que elas dissessem o que haviam entendido de cada palavra, de acordo com o contexto em que elas apareciam. No caso de “borogodó”, alguns dos possíveis significados foram: “parte do corpo da mulher‟, “mixuruca”, “fora de moda/estranho‟, “mistura/confusão”, “rolo/namoro”, “seios”, “variedade”, “coisa gostosa”, “lugar ruim”, “besteira”, “esquisito‟ e “algo sem importância”. Ufa.
No fim das contas, é uma palavra que pode ser usada em vários contextos. Como escreve Márcia: “Quanto ao significado do tão mencionado ‘borogodó’, este pode ser tudo e nada ao mesmo tempo, pois Joaquim Ferreira dos Santos dá ao leitor a liberdade de criar ou resgatar um significado qualquer ao termo, tanto que lhe confira algum sentido.”
E o “ó”?
Analisando o termo como um todo, o “ó do borogodó” faz referência à sílaba tônica “dó”, ou seja, a parte de maior intensidade da palavra. Ou seja: se “borogodó” estiver empregado no sentido de “especial”, dizer que algo é “o ó do borogodó“, então, é um superlativo: “o mais especial”. O mesmo vale, claro, quando a palavra assumir a conotação negativa – como no caso de Gilmar Mendes.
Mas vale dizer que a interjeição “Ó” (ou sua forma mais coloquial, “uó”) possui, sozinha, uma história tão interessante quanto a do “borogodó”. Mas, para contá-la, precisamos voltar alguns séculos.
Na Igreja Católica, as antífonas são melodias curtas dos cantos gregorianos que existem desde o século 4 – a prática foi herdada de antigas celebrações judaicas. São músicas pequenas, com não mais do que 25 palavras, e uma melodia simples.
Por volta do século 7, surgiram as chamadas Antífonas do Ó. Elas receberam esse nome, justamente, pelo vocativo “oh!”, empregado sempre no início dos cânticos. Essas antífonas são dirigidas a Jesus Cristo e celebram a sua chegada à Terra. Não à toa, elas são cantadas nos dias que antecedem o Natal.
Nessa época, são comuns também as celebrações à Nossa Senhora da Expectação (ou Nossa Senhora do Parto) – a figura de Maria, mãe de Cristo, dias antes de dar à luz a ele. E como as antífonas cantadas nessa época ficaram marcadas pela interjeição “oh!”, não demorou para que ela passasse a ser conhecida também, veja só, como Nossa Senhora do Ó.
Com o passar do tempo, a Nossa Senhora do Ó se tornou a padroeira de diversas igrejas e paróquias em Portugal e, devido à colonização, no Brasil. Em 1580, por exemplo, Manuel Preto, um bandeirante devoto da santa fundou, em São Paulo, a Freguesia do Ó, um dos bairros mais antigos da cidade.
A primeira capela foi construída por lá no começo do século 17 e, como era costume antigamente, não demorou para que um pequeno povoado se formasse no seu entorno. “Freguesia”, aliás, vem do latim filium ecclesiae – “filho da igreja”. Por muito tempo, a palavra funcionou como sinônimo para “paróquia” e “bairro” – até hoje, “freguesia” é a menor divisão administrativa em Portugal. “Freguesia do Ó”, ao pé da letra, quer dizer algo como “os filhos da Igreja de Nossa Senhora do Ó”.
Por fim, vale dizer que a expressão “uó” se popularizou no Brasil entre os anos 1990 e 2000. De acordo com Erika Palomino, que na época escrevia na Folha de S. Paulo a coluna “Noite Ilustrada”, sobre a vida noturna em São Paulo, o termo era comum dentro da comunidade LGBTQIA+. Ali, “uó” era um adjetivo para “algo ou alguém insuportável, desagradável”. Talvez, isso ajude a entender por que a expressão “ó do borogodó” ora possa significar algo positivo, ora algo negativo.