Texto publicado originalmente em fevereiro de 2018
Curitiba, maio de 2014. Deveria ter sido um dia de gravação como outro qualquer. O padre Reginaldo Manzotti carregava o ostensório com o Santíssimo Sacramento pelo auditório do programa Evangelizar é Preciso quando percebeu algo errado com uma menina de uns 15 anos. Terminada a benção, pediu que a levassem até a capela.
Lá, longe das câmeras, deparou-se com o demônio. “A menina tinha uma força descomunal e, apesar de sermos quatro pessoas, não conseguimos acalmá-la”, diz. A certa altura, a garota virou-se para o padre e, com uma voz grave, ordenou: “Pare com essas deprecações”. Na mesma hora, o sacerdote se deu conta de que estava lidando com “algo maior do que imaginava”. Não bastasse, a possessa foi além: “Você não é exorcista! Não tem poder sobre mim!”.
E, de fato, não tinha. Aturdido, padre Manzotti pediu uma trégua a Lúcifer e encaminhou a garota a um exorcista profissional, o padre Jorge Morkis, hoje aposentado, que libertou a menina do coisa-ruim. “Com o tempo, apuramos que, sem dinheiro, ela tinha feito um pacto para ir ao show do Justin Bieber”, diz Manzotti. O trabalho foi tão bem-feito que, hoje em dia, a menina é coroinha na capital paranaense.
Padres exorcistas, como Morkis, são raros no Brasil. Segundo dados da Associação Internacional de Exorcistas, apenas sete dos mais de 300 membros são brasileiros. A arquidiocese de São Paulo, a maior do País, por exemplo, não tem nenhum. “O ideal é que cada diocese tivesse o seu, mas há déficit de exorcistas no Brasil”, diz Dom Pedro Cipollini, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que lançou no ano passado o documento Exorcismos: Reflexões Teológicas e Orientações Pastorais. O Brasil tem 215 dioceses e estima-se que existam apenas 30 especialistas em possessões por aqui. “A falta de padres é um problema crônico no Brasil. Por isso, o exorcismo está longe de ser uma prioridade”, diz o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
Quem é que pode?
De acordo com o Código de Direito Canônico, o conjunto de leis que regula a Igreja Católica, um padre precisa se destacar em quatro áreas para poder expulsar Satã do corpo dos desavisados. É preciso ter piedade, integridade, prudência e sabedoria (doutorado em teologia, por exemplo, é desejável). Outras virtudes bem-vindas são coragem, paciência e tenacidade. Na prática, um padre só se torna exorcista se for indicado pelo seu bispo – freiras e leigos não podem ser ordenados, por exemplo.
De acordo com a Igreja Católica, exorcismos não podem ser agendados ou registrados em vídeo. Também é proibido cobrar por eles
Mas, se o processo parece ser simples, por que há tão poucos exorcistas na Igreja Católica? “Possessões demoníacas existem, mas são raras. O que vemos por aí é puro sensacionalismo”, diz Dom Pedro Cipollini. Ao contrário do que acontece nas igrejas neopentecostais, as sessões de expurgo na tradição católica são encaradas como última opção de tratamento – antes de começar, por exemplo, é preciso eliminar a possibilidade de doenças mentais ou físicas. O processo pode demorar vários meses – um dos trabalhos do padre Armoth durou 22 anos – e os acontecimentos não costumam ser espetaculares, como é comum encontrar nos canais de TV madrugada adentro. Por isso, é difícil encontrar um exorcista católico por aí.
As sessões de descarrego neopentecostais, por outro lado, têm um roteiro midiático. Um obreiro escolhe um membro da assembleia supostamente possuído por um espírito e o leva até o púlpito. Lá, diante das câmeras de TV, o pastor começa a interrogá-lo. Palavras de ordem são comuns: “Sai desse corpo que não te pertence!” ou “Está amarrado em nome de Jesus!”. A vítima, então, é agarrada pelos braços ou jogada ao chão. Ao final de tudo, o capiroto é derrotado. “O rito da expulsão de espíritos malignos virou o ápice da pregação de alguns líderes neopentecostais”, diz Luiz Henrique Rodrigues Paiva, professor da Universidade Católica de Pernambuco. “Em vez de levar a palavra de Deus aos fiéis, esses pastores se tornaram reféns de uma teologia construída em função do Diabo”, opina.
A cartilha da CNBB diz que, uma vez comprovada a autenticidade da possessão e autorizado o exorcismo pelo bispo da diocese, o ritual não pode ser alvo de publicidade, muito menos transformado em espetáculo. Divulgá-lo com antecedência? Fora de cogitação. Gravar, filmar ou registrar o ato? Nem pensar. Cobrar pelo trabalho? Proibidíssimo. Quanto mais discreto, melhor. “Se aparecer algum padre dizendo que faz exorcismo na frente dos fiéis, com direito a plateia e filmagem, pode ter certeza: não é um dos nossos”, diz o padre João Cláudio do Nascimento, reitor da capela de Nossa Senhora de Fátima, em Niterói.
Padre João Cláudio sabe do que fala. Ele foi um dos 280 participantes da 11ª edição do curso Exorcismo e Oração de Libertação, realizado em abril de 2016, em Roma. O curso é anual, custa 300 euros e inclui palestras como Identificando a ação extraordinária do demônio ou O aspecto psicológico da manipulação mental. A ideia é combater a carência de exorcistas católicos no mundo. Qualquer pessoa pode seque inscrever: membros da Igreja e leigos, como historiadores, psicólogos e jornalistas. As aulas, porém, são todas teóricas.
Em Roma, o padre João Cláudio aprendeu os principais “sintomas” de uma possessão. São cinco: falar ou compreender idiomas nunca estudados, demonstrar conhecimento de assuntos improváveis (como detalhes da vida do exorcista), apresentar força descomunal, identificar objetos escondidos e manifestar profunda aversão a símbolos sagrados.
Outra lição ensinada no curso é diferenciar os cinco tipos de ação extraordinária do Satanás. A mais famosa é a possessão – quando o indivíduo perde a capacidade de falar e agir por conta própria e, em estado de transe, age em nome do Capeta. Mas, há outras quatro: infestação (quando o alvo do príncipe das trevas são objetos, lugares ou animais), vexação (quando ataca a saúde, as finanças, o trabalho), obsessão (quando a vítima não consegue afastar pensamentos de ódio, vingança e autodestruição) e submissão (quando o endemoniado fez um pacto). O exorcismo é indicado nos cinco casos. “Independentemente do tipo de manifestação, o padre só pode agir quando autorizado pelo exorcizado. Deus respeita sempre a nossa liberdade”, diz o monsenhor Rubens Miraglia Zani, exorcista há cinco anos, que já fez trabalhos que duraram de três dias a sete semanas. “O primeiro exorcista de uma pessoa é a própria pessoa. Se ela não colabora, pouco podemos fazer.” Monsenhor Rubens explica que as principais armas do possesso são a leitura da Bíblia, a reza do terço, a confissão e participar da missa aos domingos.
As armas contra o tinhoso
Os primeiros exorcismos a que padre Eugênio La Barbera assistiu foram em Milão, na Itália. “Até hoje, não me esqueço da vez em que uma senhora de uns 70 anos levantou um pesadíssimo armário sobre a cabeça”, diz o padre, que atua na diocese de Santo Amaro, em São Paulo. Em 39 anos de sacerdócio, padre Eugênio contabiliza três exorcismos. Nunca viu ninguém girar a cabeça sobre o pescoço, vomitar gosma verde ou levitar sobre a cama. “Mas vi, durante um ritual, um rapaz cuspir cacos de vidro e pedaços de prego bem na minha frente.” Por medida de precaução, ele nunca celebra o ritual sozinho. Sempre que nota que o possesso está agressivo ou violento, chama um colega. Objetos cortantes e pontiagudos também são retirados de cena. “Já tentaram me ferir inúmeras vezes.”
Segundo o Catolicismo:
– Falar idiomas desconhecidos
– Adivinhações
– Força física extrema
– Aversão a símbolos religiosos
Aos poucos, os próprios exorcistas católicos começaram a desenvolver estratégias para desmascarar eventuais farsas. Oferecer um copo d’água benta para o possesso é uma delas. Esconder um objeto qualquer, como uma medalhinha de santo, no bolso da batina e pedir para a vítima adivinhar é outra. O truque preferido de padre Eugênio, no entanto, é recitar o rosário na frente do candidato ao exorcismo. “O Diabo tem verdadeiro pavor de Maria. A ojeriza é tanta que ele se recusa até a pronunciar o nome da mãe de Deus”, diz o sacerdote, não sem orgulho.
Apesar da adrenalina das sessões de descarrego, nada indica que a falta de exorcistas no Brasil seja contornada em breve. Apesar do fascínio do público pelo assunto, padres seguem reticentes em se aventurar por essa carreira.
Em parte porque o próprio Vaticano leva a ciência a sério – a Igreja já aceita o Big Bang e a Teoria da Evolução, por exemplo. E a ciência, é claro, entende a ideia de “possessão demoníaca” como superstição. “Os próprios bispos não acreditam mais no Diabo”, diz o padre-exorcista Eugênio La Barbera. “Mas é preciso cuidado: não acreditar nele é tudo o que o Diabo quer.
ENTREVISTA: Padre Reginaldo Manzotti
Nem o historiador israelense Yuval Noah Harari, autor de Sapiens, nem o youtuber Felipe Neto. O escritor que mais vendeu livros no Brasil em 2017 foi o padre paranaense Reginaldo Manzotti. O livro Batalha Espiritual, que fala sobre anjos, possessões e exorcismos, vendeu 138 mil exemplares. Conversamos com o sacerdote, que explica as dificuldades do ofício de expulsar o coisa-ruim.
Como surgiu a ideia de escrever um livro sobre exorcismo?
O exorcismo é um tema clássico da Igreja Católica. Mas, por desconhecer o assunto, muitos não lhe dão a devida importância. Além disso, tendem a achar que toda enfermidade é física ou emocional. Não sabem, por exemplo, que há males espirituais. Papa Francisco, inclusive, já exortou os padres a levarem mais a sério as doenças do espírito. Diagnosticadas, devem ser tratadas com confissão e, se necessário, exorcismo.
Mas há falta de exorcistas no Brasil. A que você atribui isso?
Sim, faltam exorcistas, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Falta, também, interesse do clero em tratar do assunto. Por uma questão histórica, a Igreja esteve mais voltada para o lado social e menos para a dimensão espiritual. Aos poucos, isso começa a mudar.
Se o bispo de sua diocese resolvesse nomeá-lo exorcista, o senhor aceitaria?
Claro, eu nunca diria “não” a um bispo. Mas, em virtude das minhas atividades, não me sinto em condições de exercer esse ministério. Temos a impressão de que o exorcismo se faz em uma sessão só. Mas há casos que levam mais de uma década. É um ministério que demanda tempo e dedicação. O Diabo é muito astuto. Ele gosta de fazer o ruim parecer bom e o errado, certo. Se não tomamos cuidado, caímos em tentação.
Em 23 anos de sacerdócio, já se deparou com o Diabo alguma vez?
Sim. No fim do ano passado, uma moça veio a mim, não com um quadro de possessão demoníaca, mas com um histórico familiar muito preocupante, voltado para a magia negra. Ela apresentava marcas de automutilação pelo corpo, tinha um olhar tétrico, vazio, e só sabia falar de suicídio. Comecei a fazer uma oração de cura e libertação, que durou uns 40 minutos. Uma semana depois, ela voltou, totalmente diferente. Disse que sua vida tinha sido transformada. O inimigo age de muitas formas. A possessão é apenas uma delas.
Seu livro reproduz algumas orações de cura, libertação e exorcismo. Não teme que alguém resolva celebrar um exorcismo por conta própria?
Logo no início do livro, eu aviso: nenhum leigo está autorizado a celebrar exorcismos. Mas, então, por que incluí essas orações? Porque existem muitos livrinhos fantasiosos por aí. Quis mostrar ao público o texto oficial da Igreja Católica. A recomendação é não ter medo do Diabo. Deus é maior do que ele. Como diria Santo Agostinho, o Diabo é como um cão brabo amarrado. Só morde quem se aproxima dele.