Há alguns dias, um vídeo peculiar começou a circular no Whatsapp. Uma mulher brasileira quebra ovos de aparência meio suspeita, avalia a clara, gema e casca e conclui: são falsificações chinesas. “Amigos e amigas, estou aqui. Acabei de comprar uma cartela de ovos no Extra do Quitandinha [ao que tudo indica, um mercado em Petrópolis, no Rio de Janeiro]. Olha a textura dessa clara. Não tem textura nenhuma. Não tem cheiro, um cheiro muito longe. Isso é plástico puro, diretamente não da galinha, mas da China, para nós.” A transcrição completa está disponível no Boatos.org.
O vídeo, na verdade, é uma espécie de continuação de uma fake news mais antiga – que não se passava em um mercado fluminense, e sim no Marrocos. Algumas semanas antes da versão brasileira se espalhar pelos celulares, dois vídeos em baixa definição circularam. Um mostrava funcionários trabalhando em uma suposta fábrica de ovos falsos (que agora, já se sabe, faz ovos de brinquedo, à venda aos montes no eBay e na Amazon). Outra mostrava uma mulher de sotaque árabe fritando um ovo de aparência nada apetitosa.
Ambos vinham juntos da seguinte denúncia: “polícia chinesa desmonta fábrica para fabricar ovos artificiais a partir de materiais plásticos e resíduos humanos não comestíveis… E exporta seu produto para o mundo árabe e o Marrocos, especialmente por meio de comerciantes árabes (…) Esperamos compartilhar a notícia para alertar o povo chinês branco que invade os mercados do mundo árabe através de comerciantes que não tem medo do Deus Todo-Poderoso” (de novo, agradecemos o Boatos.org pela transcrição).
Já deve estar óbvio nessa altura, mas não custa reforçar: tanto a notícia nacional quanto a importada são mais falsas que qualquer ovo que você possa comprar no Brasil. Para começo de conversa, porque o Brasil não importa ovos nem da China nem de ninguém. O portal UOL apurou com o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços que “não há registro de um único negócio na balança comercial entre os dois países envolvendo “ovos de aves”, assim como animais vivos, carnes, leites e laticínios”.
A polêmica, porém, levantou uma questão um pouquinho diferente: será que de fato existem ovos de mentira à venda na China? Bom, aí o assunto fica nebuloso.
Em 6 de novembro de 2012, a revista americana Time publicou um texto afirmando que uma mulher da cidade de Luoyang, na província de Henan, no centro da China, havia comprado 2,5 kg de ovos por um preço muito abaixo do normal em um mercado de rua – e, ao chegar em casa, percebido que eram falsificações com uma textura borrachuda curiosa. A nota foi baseada em uma matéria escrita por um jornal chinês chamado Guangming Daily, e também apareceu na agência de notícias estatal Xinhua (veja aqui). Seis anos antes, em 2006, a Xinhua já havia relatado um caso parecido. Na ocasião, afirmou que os falsificadores produziam 1500 ovos por dia, a 5 centavos cada um (a moeda não foi identificada).
Nas duas ocasiões, 2006 e 2012, a Xinhua deu uma versão resumida da receita dos tais ovos de mentira – carbonato de cálcio (isto é, giz) e gesso para a casca; resina, amido, coagulantes e corantes para a gema e a clara. No texto de 2012, afirma-se que a lista de ingredientes teria sido revelada por um ex-funcionário da fábrica em que eram feitas as falsificações, que preferiu ser identificado pelo pseudônimo Shen Hou. Já no texto de 2006, o repórter admite no texto que não conseguiu entrar em contato com ninguém associado às falsificações, mas que encontrou na internet diversos relatos que mencionavam os ingredientes.
Se de fato ovos falsificados estivessem aparecendo aos montes no mercado chinês, era de se esperar que alguma universidade ou agência de vigilância sanitária do governo tivesse pego exemplares para analisar – e depois dado declarações oficiais sobre o assunto. A China tem um histórico notável de problemas com segurança alimentar – como melancias que explodem após a adição inadequada de um composto químico que acelera o crescimento (em 2011), leite com melamina, uma substância tóxica (em 2008) e arroz contaminado com o metal pesado cádmio (em 2013). Esses casos foram analisados por cientistas em artigos sérios (aqui, aqui e aqui), e renderam pronunciamentos das autoridades.
Ou seja: os casos com ovos apurados pela Xinhua provavelmente são pontuais, e não um problema de saúde pública generalizado como foram esses outros – caso contrário, teriam gerado mais repercussão, tanto midiática quanto científica. E se são pontuais por lá, é mais improvável ainda que tenham alcançado o Brasil.
O único artigo científico que a SUPER encontrou falando especificamente da composição dos ovos falsos foi publicado por três pesquisadores da Begum Gulchemonara Trust University, instituição de ensino superior particular fundada em 2002 em Chittagong, uma cidade de Bangladesh (link). A análise feita por eles é pouquíssimo confiável: foi escrita, revisada e editada completamente fora dos padrões adotados por acadêmicos, e publicada em um periódico científico picareta (entenda melhor nesta matéria da SUPER). Mais importante ainda: cita fontes bizarras, como esta aqui:
[17] Hush, C. ‘How to Identify Fake Chicken Eggs’, China Science. Symposium. April 24th, 2009. Na verdade, o tal “Hush, C.” não é uma pessoa – muito menos uma pessoa que participou de um simpósio –, mas sim este site chamado China Hush, com uma aparência bem suspeita. A referência de número 19 também é incrível: um álbum lançado pelo músico americano Andrew Bird em 2015 e intitulado Andrew Bird & The Mysterious Production of Eggs (“Andrew Bird e a Misteriosa Produção de Ovos”, em tradução livre).
O China Hush, o artigo científico picareta e a agência de notícias todos mencionam ingredientes e números parecidos. O China Hush, especificamente, vai além e fala de um suposto vídeo gravado por um ex-funcionário da empresa que fazia falsificações. Será ele o mesmo entrevistado pela Xinhua em 2012 ou encontrado na internet pelos repórteres em 2006? Difícil saber. Uma fala dele, transcrita, diz o seguinte: “Eu aprendi a técnica de fazer ovos artificiais nesta empresa. Esses ovos eram exatamente iguais aos reais, e tinham gosto até melhor. Agora eu não trabalho mais lá. Na média nós fazemos mais de mil ovos, e ganhamos 100 yuans por dia. Eu ganhei uma fortuna (…)”
Aqui, a trilha se perde. A SUPER não encontrou o vídeo no ar para confirmar que a citação é precisa, e tampouco há outros registros de que esse ex-funcionário dedo-duro tenha existido ou dado entrevistas – o teor de sua suposta declaração é bastante suspeito.
Moral da história? Embora seja difícil duvidar dos relatos de cidadãos chineses que compraram ovos falsos e caíram no golpe, é bem mais difícil de acreditar na lista de ingredientes fornecidos pelo tal ex-funcionário – que reaparece por todos os cantos, mas nunca com fontes realmente sólidas ou verificáveis. Os ovos falsos chineses, por enquanto, continuarão um mistério. Um mistério que não tem nada a ver com um mercado em Petrópolis.