O testamento é a forma mais eficaz de garantir que a vontade do falecido sobre seus bens seja cumprida. No Brasil, assim como em outros países, há uma série de regras envolvidas na elaboração desse documento. A tal “vontade” do finado só é validada com uma série de etapas burocráticas, como autenticação em cartório, testemunhas, etc.
Mas em uma era digital e tecnológica como a nossa, tem muita gente ao redor se perguntando se toda essa burocracia realmente ajuda a cumprir os desejos da pessoa que morreu – ou se acaba atrapalhado.
Um caso recente na França, por exemplo, acabou reascendendo o debate. O rapaz em questão estava passando por um divórcio, com o casamento prestes a terminar. Ele fez planos para se suicidar – planos que incluíram uma breve mensagem a sua irmã, dizendo que queria deixar metade de seus bens para sua mãe – e afirmando categoricamente que não queria que eles fossem deixados para a sua (quase ex) esposa. Pouco tempo depois, ele levou o planejamento a cabo.
Já imaginou a confusão, certo? O advogado responsável pelo testamento final afirmou que o SMS não tinha nenhum valor legal. A mãe não concordou com a decisão, e levou a “prova” ao tribunal, argumentando que um dos últimos desejos de seu filho deveria ser considerado.
Nesse caso, a corte francesa concordou com o advogado. Eles citam o seguinte motivo: de acordo com as leis do país, “um testamento só pode ser válido se for escrito à mão, datado e assinado, minimizando os riscos de falsificação e erros”.
Tudo bem, é um processo bastante racional. Só que tem um ponto importante: todas as exigências para validar um testamento (que variam, é claro, de país em país), foram criadas com o mesmo objetivo: proteger e proporcionar segurança ao dono do testamento. Toda burocracia tenta garantir que o testamento seja um registro verdadeiro, único e intransferível dos desejos de alguém. O que não foi exatamente o caso do francês, certo?
A Inglaterra é outra que tem regras rígidas. A lei exige que o testamento seja feito na presença de duas testemunhas. Se o documento for elaborado na presença de apenas uma testemunha, não é considerado pela corte britânica – mesmo tendo todas as provas possíveis de que ele é válido. Mas, como no exemplo francês, nem sempre é possível cumprir todas as burocracias legais. E a sorte é que nem todos os países seguem o rigor inglês.
Países como Canadá e Austrália (a até alguns estados dos EUA) têm os chamados “poderes de dispensa”. Em suma: isso dá liberdade para que os tribunais e juízes decidam se um documento informal ou outro registro podem ou não serem considerados testamentos. Tudo, claro, visando que todos os desejos do falecido sejam atendidos.
Um exemplo curioso disso aconteceu no ano passado, na Austrália, quando uma mensagem NÃO enviada foi validada como testamento. Mas há vários poréns importantes.
O falecido deixou a mensagem salva nos rascunhos, com o título “Meu Testamento”, pouco antes de tirar a própria vida. No mesmo SMS, o jovem dizia desejar que suas cinzas fossem enterradas no quintal de casa. Além, é claro, do principal: todos os seus bens deveriam ir para seu irmão e sobrinho.
Logicamente, a esposa não aceitou. E ela foi ao tribunal alegando que aquela mensagem não tinha a validade legal de um testamento. Mas a juíza do caso defendeu seu veredito: ela afirmou que, da forma como ela estava escrita, a mensagem comprovava lucidez por parte da vítima. A juíza também levou em conta evidências da fragilidade do relacionamento do homem com a esposa, o que validava a decisão de deixar os bens para os parentes.
E no Brasil, pode?
Um caso como o da Austrália só foi possível porque a juíza possuía os tais “poderes de dispensa”. Isso não é muito discutido no Brasil. Mas e aí: uma mensagem de texto seria válida aqui?
De acordo com o professor de Direito Civil da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Adaumirton Dias Lourenço, a resposta é não.
“A lei estabelece requisitos específicos para cada testamento [público, cerrado, particular], descrevendo como deve ser realizado, a quantidade de testemunhas, de assinaturas, etc. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem admitido a flexibilização desses requisitos quando, através dos elementos contidos no testamento, é possível verificar a expressão da vontade livre e consciente do testador. De todo modo, acredito que dificilmente se aceitaria um testamento redigido através de mensagem de texto.”
Mas mais importante do que dizer se um testamento informal vale ou não no Brasil, é dizer que aqui as pessoas não costumam usar esse documento. Testamentos não são populares – talvez pela burocracia, talvez por questões culturais.
Mas para Lourenço, é possível que esse cenário mude, facilitando o processo de deixar os “últimos desejos” claros. “Por força das inovações tecnológicas, teremos mais instrumentos (que não o papel fisicamente assinado) para permitir a verificação segura da vontade do testador. A preço de hoje, não creio que uma mensagem de texto se enquadre nisso. Talvez de vídeo, ou de áudio. Mas ainda não se tem nada solidamente construído a esse respeito no país”, concluiu o professor.