Reportagem: Ronaldo Lemos* Edição: Karin Hueck
A primeira vez que encontrei Aaron Swartz foi na Universidade Harvard. Havia um importante seminário acontecendo sobre o futuro da música. O ano era 2004. Gravadoras, artistas e público ainda se recuperavam do choque do Napster, o site que deu início ao compartilhamento de arquivos na internet e transformou para sempre a economia da música. Naquela mesa discutia-se o que fazer com a crise da indústria musical. A pirataria certamente não era um caminho. Era preciso construir alternativas que remunerassem os artistas, ampliando também as formas de acesso à música. No meio de discussões acaloradas, um garoto chamava atenção. Ele estava ali no meio de acadêmicos mundialmente conhecidos, como Lawrence Lessig e William Fisher, professores de direito de Harvard, ambos ligados às questões de distribuição de informações na internet. Pensei que se tratasse do filho de alguém. Não demorou para perceber meu erro. Aaron estava lá por causa de suas próprias ideias. Articulado, conhecia tudo sobre direitos autorais e sobre a indústria musical, temas que ainda quebram a cabeça de muita gente até hoje. Para completar, o garoto era também um exímio programador. Poucas pessoas naquela sala dominavam campos de conhecimento tão vastos e complexos.
Em 11 de janeiro de 2013, Aaron foi encontrado morto por sua namorada, a ativista Taren Stinebrickner-Kauffman, em seu apartamento no Brooklyn, em Nova York. A tragédia virou comoção global. TVs e jornais do mundo inteiro escreveram sobre ele. Mas foi nas redes sociais que a dimensão da perda foi sentida com maior intensidade. Não só os amigos de Aaron, mas um vasto contingente de desconhecidos, que nunca tinham ouvido falar dele antes, lamentaram sua morte. E lamentaram também a perseguição judicial que acabou causando a tragédia.
Aos 14 anos, Aaron fez um feito incrível. Ele foi o co-autor de um padrão que mudaria a forma como a informação é distribuída na internet, o chamado RSS (Real Simple Syndication). O padrão permite de forma simples espalhar a informação por meio de feeds na rede: fluxos de dados que o usuário pode assinar e acompanhar em qualquer aparelho, seja no PC, no celular ou no tablet. Para entender a importância de sua invenção, basta ver o Google Reader ou até mesmo os feeds de notícias de seus amigos no Facebook ou no Twitter: todos surgiram a partir da ideia criada por ele.
Tem gente que compara Aaron Swartz a Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, ou mesmo a Steve Jobs, da Apple. Como Zuckerberg, Aaron tinha a veia de empreendedor. Aos 18 anos, criou a empresa Infogami, que foi vendida ao site Reddit, hoje parte do poderoso grupo de mídia Condè-Nast. De Steve Jobs, ele tinha o mesmo brilhantismo para soluções inesperadas e para pensar fora da caixa. Assim como Jobs, ele circulava pelas principais universidades de elite dos EUA, como Stanford, Harvard e o MIT, mas sem ter nunca concluído um curso. Se tivesse vivido mais, Aaron poderia ter criado o novo Google ou um novo Facebook. Possivelmente teria se tornado bilionário. Só que isso não o satisfazia. Ele queria ir além. Queria mudar o mundo.
A revolução está na rede
Para fazer isso, começou a se envolver em iniciativas de interesse público. Por exemplo, o projeto Creative Commons, que cria licenças livres de direitos autorais e que é hoje utilizado por sites como a Wikipedia ou nas aulas da Khan Academy, aqueles cursos do YouTube abertos para qualquer um. Com isso, ficou amigo do professor Lawrence Lessig, que acabara de se tornar diretor do Centro de Ética de Harvard. Lessig chamou Aaron para se juntar a ele em uma missão ambiciosa: reformar o Congresso americano. Na visão deles, o sistema político dos EUA estava perdendo transparência e representatividade. O trabalho de Aaron era pensar novas formas de financiamento de campanha, que permitam que os eleitores contribuam diretamente para seus candidatos, em vez de deixar o financiamento na mão das grandes empresas.
Mas, como visionário e idealista, Aaron também cometia erros. Para defender uma das causas que julgava mais importantes, o acesso público ao conhecimento científico, Aaron acabou envolvido na sucessão de eventos que desencadearia sua morte. Na sua visão, o conhecimento acadêmico deveria ser acessível para toda a humanidade pela internet. Afinal, dizia ele, grande parte das pesquisas científicas é produzida com recursos públicos.
Como um bom integrante da impaciente geração Y, que quer fazer tudo acontecer na hora, ele decidiu executar seu plano com as próprias mãos. Foi até o MIT, o Massachusetts Institute of Technology, onde tinha diversos amigos e colaboradores, e deixou seu computador fazendo o download de mais de 4 milhões de artigos acadêmicos gerenciados pela biblioteca virtual JSTOR, que reúne publicações científicas, livros e pesquisas. No processo, acabou sendo pego pelo MIT, que tomou a decisão de entregá-lo à polícia local. Vale notar que Aaron nunca colocou os artigos na internet. Seu erro foi apenas baixá-los para seu computador. Tempos depois, a própria JSTOR acabou tirando o processo contra ele.
Apesar disso, dois procuradores federais americanos, Carmen Ortiz e Stephen Heymann resolveram prosseguir com o processo. Decidiram que Aaron deveria se tornar um exemplo, um bode expiatório sujeito a grande punição. Para isso, usaram uma lei dos EUA aprovada no longínquo ano de 1984, o Computer Fraud and Abuse Act (“Lei de fraudes e abusos de computadores”), e agiram sem misericórdia para que ele fosse condenado a mais de 30 anos de prisão. Além disso, Carmen Ortiz queria concorrer ao governo do Estado de Massachusetts e foi acusada de usar o processo para ganhar visibilidade.
Ele morreu antes do julgamento, marcado para abril de 2013. A luta de Aaron contra a Justiça dos EUA foi árdua. Sua namorada disse em depoimento público que ele não estava em depressão – Aaron a pediu em casamento dois meses antes de morrer. Na visão dela, sua morte é o resultado de uma enorme injustiça, que colocou de um lado todo o poder do sistema judiciário dos EUA contra um garoto que se locomovia de bicicleta. Isso exauriu suas energias e recursos financeiros – a multa prevista era de até US$ 1 milhão. Aaron era um patriota. Dedicou seu tempo e inteligência para tentar melhorar as instituições democráticas de seu país. Ver esse mesmo país voltando-se contra ele foi além do que ele conseguiu suportar.
Apesar da tragédia, o legado de Aaron sobrevive. Existe uma lei tramitando nos EUA com seu nome, que quer impedir que casos semelhantes se repitam. Quem se debruçar sobre os textos que ele escreveu (e foram muitos) vai encontrar um pensador original e poderoso. Aaron não era só um programador. Era alguém interessado em entender como a sociedade funciona. Os textos do seu blog, aaronsw.com, preservados online, trazem discussões sobre diversos temas, de cinema a moda, de política a programação. Ele lia cerca de cem livros por ano e fazia uma resenha de cada – a lista cobre assuntos diversos, como textos sobre economia de Keynes ou crônicas de Radical Chique, de Tom Wolfe.
Quando esteve no Brasil em 2009 para participar do Fórum Social Mundial, Aaron ficou hospedado na minha casa. Era um garoto que vivia conectado o tempo todo na internet, como tantos outros da sua idade. Tinha alergia a amendoim e qualquer tipo de castanhas. Ficou separando cuidadosamente as nozes do quibe assado que foi servido no almoço no dia em que chegou ao Rio. Foi nessa ocasião que ele acabou me concedendo uma longa entrevista. Perguntei como uma criança podia ter feito tanta coisa, e qual era a diferença dele para outros garotos da mesma idade. Ele respondeu: “Não acho que eu seja mais inteligente do que os outros. Com certeza não trabalho mais duro do que ninguém. O que eu sempre tive foi curiosidade. Toda criança tem uma curiosidade enorme. A questão é que a escola a absorve, em vez de deixar as crianças a explorarem por conta própria. Quem tenta fazer algo diferente acaba tendo problemas. A curiosidade de poucas pessoas sobrevive a isso”.
No fim, a história de Aaron é a história de toda uma geração. Uma que nasceu bem no momento em que o mundo estava aprendendo a se conectar em rede e que acredita que isso pode transformá-lo em algo universalmente melhor. Graças a esse idealismo e inconformismo, é uma geração que luta para encontrar seu lugar e para ser aceita, do seu jeito. A morte de Aaron é um evento grande e triste. E vamos sentir seus efeitos por muito tempo ainda.
* Ronaldo Lemos é advogado, diretor do Creative Commons Brasil e coordenador da área de propriedade intelectual da Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro.
Para saber mais
As resenhas de Aaron Swartz
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