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Viagem ao início do tempo

Novos instrumentos, em terra e no espaço, abrem uma inédita janela para o primeiro bilhão de anos da história do universo. A luz que começa a chegar desses ermos, depois de varrer a imensidão do espaço, esboça épicos momentos da criação dos mundos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h35 - Publicado em 31 ago 1991, 22h00

Flávio Dieguez

No início deste ano, após longo e exaustivo trabalho, o astrônomo inglês Richard McMahon, da Universidade de Cambridge, Inglaterra, concluiu uma busca que se poderia, sem nenhum exagero, qualificar de monumental. Seu objetivo era bater as mais remotas fronteiras do espaço visível e selecionar, entre nada menos que 25 milhões de objetos — galáxias, a maioria — , aqueles que pudessem ser classificados como quasares. Tais personagens cintilam a grandes distâncias como esfínges cósmicas, já que, até onde se pode ver, são pouco mais extensos que o sistema solar, mas emitem mais energia que bilhões de estrelas em conjunto.

McMahon, sem dúvida, encontrou o que estava procurando: identificou nove quasares recordistas em distância, e um deles, denominado BR 1202-07 é o mais longínquo já visto. Tanto que sua luz demorou 12,1 bilhões de anos para alcançar a Terra, ou seja, quando ela iniciou sua viagem, o universo era um menino de 900 milhões de anos-somente 7% de sua idade atual, avaliada em 13 bilhões de anos. Não é difícil perceber o valor de um raio que em sua rota iluminou várias regiões do cosmo e armazenou valiosas informações a seu respeito. Não é por esse motivo, no entanto, que a proeza provoca espectativa e excitação, e sim por seu significado simbólico: afinal, o primeiro bilhão de anos da história do universo nunca havia sido observado até hoje — nem mesmo de forma indireta por meio das equações que descrevem a evolução cósmica.

Na falta de melhor juízo, a cautelosa imagem que se faz desse período é a de um deserto absoluto. Apenas um gás — composto pelos átomos mais leves e simples da natureza, o hidrogênio e o hélio — encheria monotonamente o espaço em todas as direções. Suspeita se, porém, que logo será possível dar corpo, cor e movimento a esse cenário que, em vez de amorfo, se revelaria fulgurante, quase selvagem, comparado aos padrões atuais. É o que sugere o quasar recém-descoberto, que emite 25% mais energia que qualquer outro conhecido. A magnitude de sua potência só com certo esforço pode ser concebida pela mente, pois brilha com a força de 10000 galáxias do porte da Via Láctea—que contém de 100 a 200 bilhões de sóis.

Vitalidade nessa escala faz pensar que a plácida visão das estrelas em noite límpida é enganosa. Ela esconde fenômenos e corpos celestes extremamente violentos, e estes denunciam as forças responsáveis pela evolução dos astros e do Cosmo. Uma hipótese afirma, por exemplo, que os quasares não são essencialmente diferentes das galáxias, mas sim gerados por elas. Esse raciocínio pressupõe que em sua juventude as galáxias teriam um núcleo extremamente denso, repleto de estrelas, radiação e gases dispersos, em alta temperatura. A ponto de em seu centro formar se um monumental buraco negro, ou seja, uma região onde a densidade da matéria tende ao infinito e adquire força suficiente para devorar estrelas próximas. Como compensação, o monstro ejeta para o espaço um vendaval de energia.

Estima-se que o quasar BR 1202-07 abriga um buraco negro de massa 10 bilhões de vezes maior que a do Sol, capaz de sorver o lauto banquete de 100 estrelas por ano. Assim se explicaria o jorro de energia que o torna visível a incomensurável distancia. Este ano, obteve-se a primeira evidência direta de um quasar escondido no núcleo de uma radiogaláxia, a Cygnus A, assim denominada porque emite a maior parte de sua energia em ondas de rádio, forma de energia eletromagnética, como a luz. Embora muito ativa, a Cygnus A tem grande extensão no céu—por isso não se assemelha aos quasares, que aparecem nos telescópios como um ponto de luz.

Ela também está perto da Via Láctea, 750 milhões de anos-luz (1 ano-luz mede cerca de 10 trilhões de quilômetros); em comparação, 0 BR 1202-07 está a 12,1 bilhões de anos-luz). No seu coração, porém, brilha um poderoso foco de energia, como se verificou por meio dos raios infravermelhos — a radiação de calor que, ao contrário da luz, atravessa com certa facilidade a poeira cósmica. Esse é o motivo porque não se vêem quasares em galáxias do tipo da Cygnus A vistas de perfil, elas expõem aos telescópios um espesso disco de estrelas, gases e poeira e não o seu núcleo.

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Aquilo que se chama de quasares, por outro lado, seriam galáxias vistas de frente: assim, expõem seu núcleos isto é, o centro do disco. A energia do quasar, nesse caso, obscurece as estrelas à volta. Esse é o raciocínio do astrônomo americano George Djorgovski, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, chefe da equipe que analisou a Cygnus A. “A interpretação lógica é que encontramos um quasar sepultado, que não podíamos ver por meios ópticos.” A própria Via Láctea pode ter sido habitada por um quasar, mas, por ser idosa, esgotou a provisão de estrelas próximas que alimentavam a fera. Mesmo velho e desdentado,. porém, ele ainda agita o centro da galáxia, situado na direção da Constelação de Sagitário. a 30 000 anos-luz do Sol. Entrevê-se aí forte turbulência em massas de gases, possivelmente sob a batuta de um buraco negro ancião.

Se os quasares forem realmente o núcleo ativo das galáxias, estas já habitariam o Universo desde o seu primeiro bilhão de anos de vida. Ou ainda mais cedo, pois os quasares mais distantes não parecem jovens: haviam começado a brilhar algum tempo antes de serem avistados. “Se pudéssemos determinar em que época foram acionados, saberíamos quando as galáxias se formaram?, aposta o astrônomo americano Wallace Sargent, do Instituto de Tecnologia da Califórnia. Um dado animador é que, de acordo com alguns cientistas, as barreiras do tempo serão quebradas cada vez com maior freqüência. De fato, mal se anunciou a descoberta do BR 1202-07, surgiu outro recordista, cuja luz teria sido emitida quando o Universo tinha 870 milhões de anos.. Assim, dentro de um ano se poderá chegar ao período em que o Cosmo tinha cerca de 350 milhões de anos. Mas será difícil superar essa barreira.

“Nesse limite, até os mais brilhantes raios de luz serão apagados por incontáveis nuvens de poeira e gás intergalácticos”, explica McMahon. Ele calcula que ao longo das eras a luz do quasar BR 1202-07 teria atravessado mais de 1 000 nuvens como essas muito rarefeitas, geralmente, mas tão extensas que às vezes milhares de galáxias aninham-se em uma delas. Trata-se de um dos componentes da chamada matéria escura, cuja existência tornou-se um dos mais importantes fatos estabelecidos nos últimos anos. Supõe-se que apenas 10% da massa do Universo está na forma de objetos brilhantes como as estrelas: os 90% restantes não emitem luz e são praticamente invisíveis. Parte substancial da matéria escura pode ser formada por neutrinos, partículas subatômicas que transportam muito pouca energia e por isso são difíceis de detectar. Seja como for, essa massa invisível deixa sinais claros de sua presença.

Como exerce força gravitacional extra, faz com que as estrelas de uma galáxia, por exemplo, girem mais rápido do que girariam, caso a única matéria existente fossem os corpos brilhantes. Assim, qualquer teoria sobre a evolução do Cosmo terá de levar em conta as ações desse lado negro da matéria, até agora despercebida nos assombrosos vazios entre as galáxias. Mais do que isso, a mais bem cotada teoria atual considera que no interior da matéria escura surgiram as sementesdas das galáxias. O raciocínio básico, bastante convincente, supõe que o Cosmo era realmente muito monótonos no princípio. Embora distribuídos por igual em toda parte, seria inevitável que alguns átomos se aproximassem, ainda que por breves momentos.

Mas, quando se forma uma pequena aglomeração de matéria—uma semente—, a força gravitacional cresce, nesse local, atraindo novos átomos das vizinhanças. Cria-se, assim, uma reação em cadeia: quanto mais se amplia a aglomeração, maior é sua força de atração e mais ela cresce. Viria daí a grande intimidade observada entre matéria escura e brilhante uma envolvendo a outra em grandes halos. Foi o que viu, de maneira espetacular, há alguns meses, o astrônomo Anthony Tyson, pesquisador da empresa americana AT&T. Ele verificou que a luz de uma galáxia distante era fortemente encurvada ao passar perto de um aglomerado—diversas galáxias girando em torno de um centro comum, como os planetas à volta do Sol.

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A massa luminosa, por si só, não poderia forçar a luz a curvar-se tanto quanto se observava e Tyson deduziu: o que estava “vendo” era a matéria escura. “Era como se a matéria luminosa e a escura tivessem conhecimento uma da outra” compara o astrônomo. Justamente como se poderia esperar no caso de as duas formas de matéria terem evoluído juntas ao longo de bilhões de anos, elas gravitavam em perfeita sintonia à volta de um centro comum. Novos instrumentos podem fornecer chaves para dirimir dúvidas persistentes, e nesse caso, o vento sopra a favor dos pesquisadores. Já no final de 1991 começa a funcionar o maior telescópio do mundo batizado de Keck e situado no Mauna Kea, um vulcão adormecido do Havaí.

Com 36 lentes de 2 metros de diâmetro, ele promete esmiuçar aquilo que, até agora, apenas se entrevê. “Junto com outros instrumentos ele vai localizar, identificar e estudar a época de formação das primeiras estrelas e galáxias”, diz o pesquisador Frederick Gillet, dos Observatórios Nacionais de Astronomia Óptica. Estados Unidos. Há grande expectativa, também, com relação a três formidáveis satélites-telescópios que, apesar dos problemas com o Hubble, os americanos pretendem colocar em órbita até o final da década. O primeiro deles, designado pela sigla GRO, foi lançado no último mês de abril com a meta de elaborar a mais ampla investigação celeste na faixa dos raios gama, a mais energética forma de radiação eletromagnética (uma partícula, ou fóton, de raio gama transporta 10 000 vezes mais energia que uma partícula de luz).

Em 1997 está programado para voar o AXAF, capaz de enxergar fótons de raios X, um pouco menos energéticos que os raios gama, e em 1999 deve subir o SIRTF, especializado em captar radiação de calor. Nessa data também ficará pronto o Telescópio Muito Grande, que os europeus estão construindo no alto dos Andes chilenos. Ele deve o nome às quatro lentes de 8 metros cada uma, capazes de torná-lo mais potente que o Keck. A simples listagem dos instrumentos impressiona os mais experientes pesquisadores, como o americano John Bahcall, do Instituto de Pesquisa Avançada de Princeton. “A Astronomia terá uma década de novidades chocantes” admira-se Bahcall.

Poucos cientistas, atualmente, arriscam-se a dar traços precisos aos esboços que fazem sobre a origem das galáxias. Exemplo disso é um livro recém-escrito (ainda não editado em português) pelo teórico americano Tony Rothman, da Universidade Harvard. Rothman faz curiosa descrição do primeiro bilhão de anos da história cósmica. “Nessa era desbotada, os planetas ainda não tinham se formado e talvez nem mesmo as primeiras estrelas e galáxias. Os mais antigos quasares datam desse período, mas os astrônomos não esperam encontrar muitos deles em tempo mais recuado”, resume o cientista. A expectativa, agora, inverteu-se. Aos poucos, reduz-se a imensidão que ainda separa o início dos tempos e os homens, que, 13 bilhões de anos mais tarde, se encantam com a perspectiva de reconstituir o mundo onde nasceram.

 

 

 

 

Para saber mais:

É uma estrela, bip. É uma galáxia, bip, bip

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(SUPER número 6, ano 9)

 

 

 

 

 

Corrida para o passado

A chave para se calcular a idade do Universo surgiu com o astrônomo americano Edwin Hubble, que, em 1929, percebeu-não sem espanto —que todas as galáxias do céu estavam se distanciando da Terra. Era como se todo o Cosmo estivesse se esticando e a conseqüência disso irrompeu como um clarão na mente dos cientistas. Se estavam se afastando, as galáxias deviam ter estado juntas, em algum momento do passado—desde então identificado com o início dos tempos. Mais do que isso, podia-se calcular o tempo que duas galáxias haviam demorado para afastar-se uma da outra: se dois corpos estão a 10 quilômetros um do outro e se afastam a 5 quilômetros por hora., conclui-se que estiveram lado a lado duas horas antes.

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Não é fácil fazer essa conta ao lidar com o conjunto do Universo. Para se ter uma idéia, as galáxias mais distantes têm de se afastar mais velozmente, já que, para chegar à distancia em que estão, não podem ter demorado mais tempo que uma galáxia próxima, mais lerda. É justamente por isso que, se o tempo andasse para trás, todas as galáxias chegariam, ao mesmo tempo, a um mesmo ponto do espaço. Outra complicação: além de acompanhar o esticamento geral do Universo, as galáxias também se atraem sob ação da gravidade. Por esse motivo, muitas galáxias próximas, em lenta expansão, estão se aproximando, e não se afastando da Terra. Por outro lado, é difícil avaliar a distancia das galáxias muito afastadas.

Todas essas dificuldades, embora não impeçam seu cálculo, introduzem grande incerteza na idade do Universo: os cientistas, muitas vezes, assinalam apenas que ela se situa entre 10 bilhões e 20 bilhões de anos. As mais aprimoradas estimativas apontam para o tempo de 13 bilhões de anos, mas ainda se trata de um número provável. Não é definitivo.

 

 

 

 

 

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